XVIII. Nunca

A chuva caía sobre a rua de paralelos incertos. No fumo lúgubre daquela manhã, respirava-se os vapores da cidade dos becos escuros, das casas em ruínas, do jazz abandonado. Aquela cidade perdera o brilho, perdera a honra do amanhecer em glória, perdera o deambular devaneador das promessas rubras.
A cidade tornara-se azul permanentemente, o céu cinzento e as tintas de todos aqueles edifícios, outrora magnificentes, sumptuosos, escorriam, em direcção às grades do esgoto. As pedras deslavadas perderam o calor do sol e as aves fugiram sem aviso prévio.
Os transeuntes daquelas ruas perderam a individualidade. Eram todos iguais, vestiam-se todos em tons neutros. Mexiam-se, sem nunca se moverem. Atravessavam as ruas e eu, sem nunca reparar nas cores dos semáforos, via-os. Quis-me parecer que iam todos para o mesmo lugar: para lado nenhum.
Não tinham motivos. Não podiam ter. Acabara-se a ideia do sonho. Já nenhum fio de vontade os prendia à vida.
Não havia um único ser-vivo naquela cidade. Morreram todos. O que existia eram sombras de seres. A sombra de serem alguém. Eram coisas que existiam ali, sem quaisquer propósitos.
A inverosimilhança de se tornarem donos das suas figuras espectrais agredia-me. Também eu já não me encontrava, não mais, ali. Já não era dona de nada, como antigamente fora. Já não podia pedir nada, por me terem tirado tudo: as cálidas promessas de banco de jardim, o trompete que, todos os dias, me brindava com uma interpretação da «Nature Boy», de Nat King Cole. Era desafinado, por vezes, mas era tão familiar e acolhedor. Era um pouquinho de casa.
Eu soube, naquele dia, que nunca mais ira viver no mundo que me tinha sido apresentado naquela cidade, outrora nossa. Eu soube que se fechasse os olhos, já nem te veria, já não te ouviria a citar Pessoa e a louvar Camões ou Florbela. Eras tão deles e eu tão tua e, naquele momento, tão de ninguém, como se o meu mundo fosse então composto por partículas atmosféricas que se fixavam aos meus pulmões, impedindo-me de respirar. 

1 comentário:

Jéssica Cardoso disse...

Sei de cor a Primavera de cima, mas prefiro deixar-te aqui as minhas palavras.
Dizem que nunca se diz nunca, mas, só assim, diz-se nunca duas vezes. O mundo é redondo. Nós somos quadrados dentro dele e tu, que és tão como eu, no mínimo que posso saber, preenches de preto e de turvo, e de cores neutras e dignas, os alicerces desse mapa sem retorno. Vivo de primaveras ausentes e invernos enganosos, mas ler-te é começar. Onde quer que esteja, saber de ti é o ponto de partida para me encontrar dentro de mim mesma.
Obrigada por me desmascares. Por me achares. Obrigada por fazeres da roda viva dos dias, um lugar mais acreditado para se poder viver. Obrigada por me mostrares, da maneira mais bonita, que não fomos todos feitos para caber no mundo.
Sei que somos nós, durante todo o tempo em que nos omitimos.

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Quando lia contos de fadas, eu imaginava que aquelas coisas nunca aconteciam, e agora cá estou no meio de uma! Deveria haver um livro escrito sobre mim, ah isso deveria! E quando for grande, vou escrever um...
L.C.