neuf

Quero que cases comigo. Que cases com o meu riso sonolento, com os meus complexos e os gostos exóticos. Que te sintas bem num ninho de andorinhas; que ames a Primavera e o sol de Março e os jardins teus, de amores-perfeitos. Quero que cases comigo. Na pele. Que consumas todo o meu corpo, como em tantas luas o fazes, e que me amarres, sem que queira fugir. 
Por isso, quero que tenhas tudo o que me cai dos bolsos: um brinco, um bombom ou um amor-perfeito – redondinho e aveludado, como o amor-perfeito tem de ser –, todas as arcas de tesouros que guardo no peito e na memória. 
Quero-te como quero a própria vida e anseio da tua saliva todo o amor que guardaste para mim, Quero-te nas minhas veias e no meu ventre e nas pontas dos dedos e quero-te assim, sem fim, total, loucamente. 
Amo-te mesmo.

IX.Simultaneidade




É preciso partir, definitivamente. 

Ou ficar. Ficar e mudar.
É preciso dar à sola ou ficar e mudar tudo.

VIII. Sangue frio

Os dedos escorrem pelo braço, trinando sons negros na guitarra. A caixa ecoa a infelicidade e geme, baixinho. A guitarra chora. 
Os dedos escorrem cegos pela escala, suam o metal. Ao violino, dói-lhe a alma. E os violinos têm mesmo uma alma. 
Nos dedos, escorrem, ímpios, rios de vida... mortos. A impureza foi eliminada a sangue frio, como tem de ser, impiedosa como a luz do sol ao incidir na lupa com que os miúdos queimam formigas nas tardes de verão.


VII. Selvagem

O corpo onde a água habita, de copo em riste sublima a criação divina. Sou livre, sou um ser selvagem. O meu coração ruge e as minhas garras vibram ao tocar a erva molhada da manhã. Tenho presas e o peito cheio de ar; persinto a caça, os aplausos distantes e… e as luzes que me focam e cegam…

Estou presa. Há arames nas minhas mãos e pés. Ainda tenho a boca sossegada. Arfo. Não me descobriram a razão, ainda. E é aí que reside toda a minha liberdade.

VI. Tosta

Do País das Maravilhas...

1/2 xícara de leite
3 ovos
1/4 xícara de manteiga de amendoim
2 colheres de sopa de açúcar branco
1/2 colher de chá de extracto de baunilha (opcional)
1/4 colher de chá de canela em pó
1 colher de sopa de óleo vegetal
4 fatias de pão

Passo-a-passo, sem mergulhar o dedo na manteiga:
1. Misturar o leite, os ovos, a manteiga de amendoim, o açúcar, o extracto de baunilha e a canela numa tigela grande.
2. Aquecer o óleo na frigideira, a lume médio.
3. Embeber cada fatia de pão na mistura de ovos (ambos os lados).
4. Fritar em ambos os lados até doirar, cerca de 3 a 4 minutos de cada lado.
5. Servir quente e com muuuito amor e açúcar.

P.S.: Aconselha-se que se lambam os dedos!

V. Realidade


O que é verdade é real.
O que não é verdade não é real.
É uma ilusão, mas parece real.
O amor é real.
É a expressão suprema da vida.

IV. Rezar

Recostei o corpo à pedra gelada, salgada pelo mar. Fundi-me com as algas e fechei os olhos. Senti-me gelar, salgar; o meu mundo era um mar de ideias e a minha mente ribombava sobre as minhas pálpebras. As minhas mãos, agora exangues, juntavam-se, formando uma posição de prece. 
Procurei em mim a resposta, a calma ao mar bravo que rugia e doidamente sibilava dentro dos meus ouvidos. 
Eu não era pele, não era carne, nem ossos. Não havia sangue em mim. Toda a minha vida era feita de sal e erros alheios. E eu beijei aquele abismo em que me embalava.
Só rezava, por rezar. Sem acreditar. Ria, quando o fazia. Era inútil. É inútil... É inevitável... É fatal.
– Nada a fazer.
– Nada a fazer.



Acho que o ventre de onde nasci, nunca me quis. Desconfio, até, que o sangue que me corre nas veias foi-me dado sob uma uma imensa dívida. E no caminho que tenho percorrido, desde que larguei o berço, tenho vindo a pagar em lágrimas todas as gotas de sangue que puramente precisei. 
Foi-me imposto que nascesse e agora dói a quem me criou que eu tivesse nascido.
O mundo é irónico, a família é ridícula e eu estou cansada dos laços rompidos que me prendem a esta casa, as estas paredes, a esta pele.
A minha maior dor está-me no sangue e eu nunca poderei mudar isso.

III. Romance

Romance é um livro que eu nunca abriria. Por ter medo; por ser uma fera desconfiada; por rugir à novidade.
Até que abriram um livro muito meu: Eu. Eu própria. Com todas as minhas páginas feridas, gastas, borratadas por lágrimas e manhãs de chá. Eu própria, com os meus cantos dobrados e com as frases que sublinhei na memória. 
Depois decidi que o romance não era um livro tão mau assim.
Desde então, que escrevo o nosso. 

II. Simbólico

Olhos lunares beijavam a força daquelas águas como se olhassem pela rebentação. Sopravam os beijos e acariciavam o sal, dando ao mar o azul esverdeado daquela noite.
Não!
Naquela noite, a água era feita de prata, como se todos os peixes nadassem nela, à sua superfície. Brilhava, rugia, sibilava. Por fim, sorria.
O mar sorriu à lua.
O mar sorria. 

I. C12H22O11

Março


Sou muito de Março. Sou de sangue de dias com sol quente, zunidos de abelhas, mas com brisa tão fresca, que é Inverno na minha sombra. Sempre, e em demasia. Que nasçam as flores e os pardais cantem. Que seja sempre Primavera na minha alma.

Este es el prólogo


Dejaría en este libro
toda mi alma.
Este libro que ha visto
conmigo los paisajes
y vivido horas santas.

¡Qué pena de los libros
que nos llenan las manos
de rosas y de estrellas
y lentamente pasan!

¡Qué tristeza tan honda
es mirar los retablos
de dolores y penas
que un corazón levanta!

Ver pasar los espectros
de vidas que se borran,
ver al hombre desnudo
en Pegaso sin alas,

ver la vida y la muerte,
la síntesis del mundo,
que en espacios profundos
se miran y se abrazan.

Un libro de poesías
es el otoño muerto:
los versos son las hojas
negras en tierras blancas,

y la voz que los lee
es el soplo del viento
que les hunde en los pechos,
entrañables distancias.

El poeta es un árbol
con frutos de tristeza
y con hojas marchitas
de llorar lo que ama.

El poeta es el médium
de la Naturaleza
que explica su grandeza
por medio de palabras.



Federico García Lorca, 07 de Agosto de 1918

ave amore: III

Pausei o relógio. Pousei o relógio e sentei-me; senti-me, no sangue que começara a fluir novamente sob a pele gelada das pernas. Estavam já roxas, trémulas. Sob os olhos, dois abismos rugiam, da mesma cor que um céu tempestuoso. Hesitei e toquei-me naquele vácuo que se fazia de meu cão-de-guarda: a minha maior companhia.
A dor confortava-me e eu só sabia amar, doendo. Sabia que não seria a mesma. Sabia que todos os caminhos eram finas teias de aranha, pequenas gotas de orvalho… eu caminhava descalça e, a todo o custo, esforçava-me para manter o balanço, qual equilibrista sob um chão de espinhos.
Sabia que assim que chegasse ao centro, ao roseiral – oh!, e Deus sabe o quanto eu o queria –, uma cama de fina erva primaveril cobriria toda a dor e daria descanso aos meus pobres pés peregrinos.  
Sorri, ainda trémula, mas segui em frente e no final daquela fina linha de seda, tudo o que eu deixara para trás, evaporara-se. Uma densa camada de fumo ocupava as minhas memórias e o meu peito chamava-me para a natureza.
Colhi, por fim, a melhor das flores. Sorri-lhe e beijei-a, deixei-me envolver pelo toque suave das suas pétalas e bebi daquele perfume. Amei-a. Naquele momento, soube que a amaria até morrer. Soube que todos os meus espinhos foram cortados. Não existia mais barreira nenhuma entre mim e mim mesma. E eu era feliz e eu era energia. E tudo ali era paz e em mim não viveria mais do que a beleza duma rosa.

Muito estranhamente, isto é um ave amore.
Senti um sussurro na pele, como um beijo de erva molhada sob as pontas dos dedos. Tremi. Deixei-me embalar por aquele aperto. Sufoquei-me e senti vontade, de novo, de cravar no corpo a dor que senti na alma. Quis respirar fundo mas senti-me, toda eu, feita de fumo, capaz de desaparecer com um suspiro de andorinha. Cerrei os punhos e, sem que me apercebesse disso, voltei novamente à paz. A dor não sossegara. Ainda estava aqui. Ainda está. Porque o amor não morre. E é por isso que senti paz.
Conheço a fera dentro de mim. Sei quando dorme e sei que, naquele momento, as portas da arena estavam abertas e que eu morreria assim que me visse a um espelho. E já chorava e já me via nas lágrimas que lhe caíam sobre o peito. Mas foi por ele que senti paz.
Pelo calor que, de repente, senti aflorar nas minhas faces, nas minhas mãos. Pela ânsia de sangue que deixei de sentir.

Sei que encontrei a saída de mim mesma. 

ave amore: II

Sento-me à tua frente. Repouso o meu olhar no teu – agora alheio – e levito. No meu sangue voam andorinhas. Chilreiam e dançam nesta alegria primaveril. Percorrem-me a pele áspera, fazendo-me girar sobre toda a tua aura. Oiço-te respirar e rezo para que me oiças viver por ti. Consegues? Não. Não repares em mim. Não me vês. Não me olhas sequer. Mas eu sei-te, sabendo que… oh! Desapareceste!
Terei de acordar agora? Preciso de te ver. Vou abrir os olhos.
Não estás aqui, definitivamente. Não cheira a limão, nem a mel – o teu cheiro. Que eu sempre soube que trarias no corpo; mesmo quando eu velava todo o meu ser, naquelas noites em que derramava suor, lágrimas… sangue. Mesmo nesses luares, eu já te sabia, sabendo que chegarias. 

Tricoto o tempo

Tricoto o tempo;
Frágeis paus de cerejas servem de fio.
Para mim,
O tempo corre,
O fio foge,
Um rio sem fim.

Alice