e sete anos depois, sonhei contigo

Hoje e nos últimos dias, tem sido recorrente a vontade de abrir este caderno que partilho em vão.
Sei, que no fundo, e entre milhares de cigarros, sempre esperei que um dia o encontrasses numa gaveta, misteriosamente ali colocado, como que por magia. Eu imagino que abres este caderno e me lês.
E na outra noite sonhei contigo. 
Já quase não penso em ti. A minha vida continua a merda do caos que conheceste. Eu sei que não ligas para palavrões e eu já não temo pecar. 
Mas na outra noite sonhei contigo.
Sonhei que passado todo este tempo, nos fitávamos finalmente, sem vergonhas ou sem jeito de desatenção. Sonhei que finalmente tivemos uma conversa que nunca existiu. Até porque não foram tantas assim as vezes em que falámos. 
Mas finalmente consegui proferir as palavras que te podiam ter feito enorme, pesado. Finalmente te disse que desde o dia em que te conheci mesmo... desde esse dia, nunca mais fui a mesma pessoa. Guardei as tuas dores e transformei-as em minhas. Pelo menos, uma doce parte delas. Finalmente te disse quantos beijos te dei, quantas lágrimas te chorei, quantas foram as vezes que o teu copo partido me beijou a pele. Na mais amorosa das dores. 
E nessa noite em que te sonhei, disseste que me amavas.
E nessa mesma noite, desencontramo-nos. 
Porque o amor é urgente e levámos anos para o acudir. 
Porque guardámos lamentos e hipóteses. Guardámos fragmentos, ódio, as mais sedentas vontades de amar e destruir. Guardámos tudo!
E para quê?
E depois acordei.
E não me lembrei de ter sonhado. Até ter recordado a cor negra das tuas olheiras, quase esverdeadas. Ou seriam os teus olhos? Estavas sempre tão cansado... 
E depois voltei a beber do chá da memória. E adormeci em recordações e como gostaria que o meu sonho fosse realidade e que, do lado de lá, estivesses à minha espera.
Por isso sei que vamos continuar com esta caixa enorme que transportamos para todas as viagens; que mudamos para todas as casas que somos; que revemos em todos os corpos que vivemos.
Talvez te sonhe amanhã.

A ti, que és ódio e carne rasgada.

Alguém a partiu. Alguém pegou nela, atirou-a ao ar e viu-a cair – ela desfez-se em tantos pedaços.

Levantou-se e juntou as partes que conseguia. Varreu o chão. Varreu-o a fungar o nariz. Fumou seis cigarros. Vomitou. E lavou a cara. Tomou banho e voltou a lavar a cara. Alguns dos pedaços remendados fugiam-lhe da carne e ela tentava, em vão, repô-los.

Alguém a partiu e alguns dos cacos foram para debaixo da cama. E ela sabe que lá só existem monstros. Ela não os apanhou.

Mudou de casa.

Mudou de casca.

Não mudou de pele. Não conseguia.

Pegou numa faca e tentou desenhar uma saída do próprio corpo.

Não conseguia.

Vestiu o casaco e foi comprar mais cigarros. Atravessou o chão gelado e caiu e a neve parecia mais quente do que na noite anterior. A neve trazia conforto.

Fumou mais seis cigarros. E vomitou. Na neve. Que nojo! Nojo dela. Daquele alguém que a deixou cair.

Propositadamente.

E ele era um filho da puta. Mas ela estava bêbada. Estava? Não sabe. Não se lembra.

Puta.

Estava a pedi-las, de certeza. 


Agora chora, já se lembra. Já sabe o cheiro que se sente quando se cai ao chão. Já sabe como respira alguém que atira a mais fina peça de porcelana ao chão. Já sabe como é suave, e livre de culpa, a pele de alguém que atira a mais fina peça de porcelana ao chão.

Propositadamente.

Qual culpa? Se ela estava bêbada. Não estava?

Mas estava a pedi-las, de certeza.


Puta.

4:14

Amanhã é sábado... isto é, neste momento, já é sábado...
Amanhã acordarás cedo e tão certo é isso como não saberes que nesta madrugada, em que dormes (e espero que tenhas tirado os óculos), não consigo sequer considerar a ideia de fechar os olhos e adormecer...
Tive aquelas ideias. Daquelas.  E fiz por não pensar nisso. E tenho medo de adormecer e que o meu coração me conceda esse último desejo. Mas é tudo tão colossal e torturante... e as paredes em volta estreitam-se e asfixiam-me e o meu peito sobe e desce,  dolente... 
As lágrimas fogem-me e eu só peço para poder adormecer onde tu estás,  para que, mais uma vez, o teu corpo e o teu calor sejam a minha música de embalar...