Teve início em Março uma viagem no blog do Jota: a Blogostory! Treze bloggers concorreram a um concurso de escrita, cheios de incertezas, numa tela em que as tonalidades variavam entre um certo nervosismo, muita ansiedade, e, claro, uma enorme vontade de diversão!
Ao longo do percurso, com altos e
baixos, houve desistências, atrasos, até eu mesmo falhei na participação de uma
fase! Mas a linha do tempo nem sempre joga a nosso favor. Mesmo assim, estamos
todos de parabéns! E é com muita alegria (e alguma tristeza) que a Blogostory chega ao fim...
Para ser sincera, não esperava ganhar. Aprendi com o tempo que não devemos esperar o melhor das coisas, para as desilusões não serem maiores. Contudo, aquele bichinho da escrita que se revelou há já alguns anos levou a melhor e, com muitas horas a olhar para o tecto com a caneta na boca a pensar o que fazer a seguir com a Rita e com o Ricardo, Lê-me a Sépia chegou ao pódio e eu não poderia ficar mais feliz!
Tenho a agradecer a todos aqueles que votaram em mim. Tenho de dar os parabéns a todos que, tal como eu, participaram e deram o seu melhor e tenho de admitir que olhava para as outras histórias, sem sequer saber os nomes dos autores e pensava «Ok, não tenho hipótese contra esta…». Às vezes ficava frustrada, mas acho que aconteceu com todos nós!
Foram dois meses assim; incertos mas cheios de produtividade que resultaram em coisas muito boas. E, da mesma forma que vou dar um fim à Rita e ao Ricardo, espero também que todas as outras personagens tenham o seu fim no blog de cada participante!
Todos saímos vencedores, porque
todos ganhámos alguma coisa… Como diz a minha avó, quanto mais não seja,
ganha-se juízo! Se é a escrita que vos dá alento, então sigam-na! Nunca desistam
dos vossos sonhos!
E aqui fica o primeiro capítulo
de Lê-me a Sépia.
Espero que gostem!
I. O espelho
Vê-nos
como fotografias antigas. Mas não a preto e branco. Isso é demasiado melancólico
e eu gosto do mundo com um tom dourado…
27/01/2013 – 06:38
Quando acordei, o sol entrava já tímido
pela janela suja do teu quarto. A chuva tinha aliviado e os raios de luz
desenhavam teclas de piano sobre a tua cama desfeita, sobre as tuas costas nuas,
sardentas, encandeando-me sobre o espelho, cujos fragmentos, plantados na
carpete, recordavam-me a noite anterior.
Também a luz se fragmentava no teu
cabelo raro, qual espelho destroçado pela heroína. Um dia serás um músico a sério, meu querido, sussurrei.
Arrastando o lençol branco enrolado no
corpo, colhi as roupas perdidas pelo chão. Juntei as tuas num pequeno monte,
aos pés da cama. Coloquei a bengala do teu lado. Sabia como não gostavas de a
procurar. E também sabia que depois das noites em que, ao meu lado, suspiravas
baixo, tão só, tão fraco, tão perdido, acordavas de mau humor.
Olhei
pela janela. A máquina trabalhava já com todas as suas peças, rapidamente, com
urgência e ganância, a todo vapor. Já me havia habituado a todo aquele ambiente
citadino tão distante do amanhecer bucólico a que estivera familiarizada
durante os seis anos anteriores.
26/01/2013 –
23:51
– Vem cá, querida. Senta-te aqui –
apontaste para o balcão.
Sentei-me e senti o mármore gelado sob a
minha pele fina; marmórea também.
– Diz-me: o que se passa? Estás a
sentir-te bem?
Assenti. Puxaste a cadeira de madeira
branca para junto do balcão e encostaste a cabeça à minha coxa magra. Senti a
tua barba a picar e um arrepio percorreu-me a pele.
– Queres comer ou beber alguma coisa? Água
ou assim…
– Não. Tens aí alguma coisa? – sabias ao
que me referia.
– Tenho. Mas sabes que não gosto que
abuses daquilo. Está no armário da casa de banho – tiraste uma garrafa de
cerveja do frigorífico, abriste-a e levaste-a à boca seca, gretada.
Saltei do balcão, descalcei os sapatos
de camurça antracite e fui, cambaleante, cansada, até à porta de madeira azul que
ficava ao fundo do corredor, do lado direito.
O teu apartamento, apesar de ficar na
Foz, era já um edifício antigo. As canalizações estavam ultrapassadas, o chão e
as paredes manifestavam algumas rachadelas e no tecto existiam sinais de fungos
e infiltrações. Lembro-me de reparar nisso, como se duma galeria de arte se
tratasse. Abri o armário e, atrás do frasco dos antiácidos, encontrei a
saquinha com o pó branco. Voltei a dirigir-me à cozinha, com os pés gelados
pela tijoleira acastanhada.
– Rita, querida, tens a certeza?
Não te respondi. Olhei para a janela,
fitei o Atlântico nocturno, selvagem, destruidor. Chovia torrencialmente e o meu
cabelo ainda pingava, da corrida até ao apartamento.
Despi a casaca de couro e o casaco de
malha bege. Perdi a noção do tempo que passara desde que ouvira a tua voz pela
última vez, desde que o teu acento lisboeta repousara sobre a minha face
quente. Ficamos os dois calados durante alguns séculos. Não te vi, mas senti-te
movimentar, como se a deslocação das partículas suspensas no ar, no espaço por
onde andavas, me conseguissem beijar os ombros nus.
Acendi um cigarro, de olhos postos ainda
no mar. O sabor do tabaco queimou-me a garganta. Haveria de deixar de fumar,
quando assim fosse possível. Até então, lá iria mais um prego para o caixão. Não
queria ter de enfrentar a depressão de quem deixa de fumar; não queria ter
prisão de ventre, perder o sono, arrastar-me, bipolarmente, pelas ruas da
amargura.
Olhei sobre o ombro esquerdo. Vi-te
sentar na cama ainda com a cerveja. O apartamento não passava de um estúdio mal
organizado. A carpete bordeaux que
cobria a área do quarto improvisado estava a esfiar nas pontas, cheia de fios
puxados, com alguns buracos feitos, provavelmente, pela cinza do cigarro.
Fixei os vasos do parapeito da janela.
Não havia uma única flor, nem uma erva que tivesse vingado ali. Falta de luz,
falta de água, falta de tudo. Costumava cuidar
delas… Nem as plantas escolhem este sítio para viver, por que o hás-de fazer?
– Morreram. Desde que te foste embora,
não houve uma que sobrevivesse.
– Estava a pensar nisso. Tenho a certeza
que não as regaste mais.
– Acho que me vinguei nelas. Todos os
dias, olhava para elas. Via-as secar, murchar; via-me a secar, desfalecer, nos
seis lânguidos anos da tua ausência. Elas não tinham o direito de poder viver
sem ti, da mesma forma como tantas vezes desejei que não pudesses viver sem mim
também. Sabes o quanto ainda me custa?
Limitei-me a chamar-te mentalmente: Ricardo… Olhei-te nos olhos, fixamente.
Os teus olhos velhos, cansados, enrugados, tão negros… tão perdidos. Ali, com
os teus quarenta anos, com a barba de dois dias por fazer, tinhas o olhar do
jovem de catorze anos, separado da família, impotente, revoltado, perdido.
– Por quantas vezes te amei? Por quantas
mais te odiei? Chorei-te entre os lençóis que cheiravam a ti, a maracujá!
Beijei a tua almofada na esperança de uns lábios cheios, de cerejas. Os teus
cabelos negros e o perfume de cocô. Rita, quantas vezes mais te odiarei? – vi a
contemplação no teu olhar, num sorriso demarcado pelas rugas. Caíam-te alguns
cabelos claros e finos sobre a testa, mais enrugada do que há seis anos atrás.
Impávida, observei-te sorver o teu
Parliament, derrotado. Refiz-me:
– A culpa foi tua – rosnei, soando mais forte
do que aquilo que me sustinha.
– Sou fraco, mas não quero largar-te.
Não posso, minha querida. Sou egoísta e tu és a pele que há em mim – levaste o
cigarro aos lábios e desejei, secretamente, ser aquele cigarro.
Sabia-te confuso. Sentia-o na atmosfera
pesada que nos envolvia. Havia fumo no ar e senti a garganta a arder. Lágrimas e
tabaco. Dirigi-me ao balcão, enchi um copo de água e beberiquei, disfarçando a
fraqueza latente nas lágrimas temíveis. A chuva ofuscava então a paisagem. A
janela não passava duma tela borratada, abstrata; tela dum artista atormentado.
– Sou um fraco, querida, mas estas mãos
calejadas pedem o teu corpo de seda. És uma flor, a mais fresca, e destruí-te,
porque é isso que fazemos quando gostamos duma flor: matamo-la, cortamo-la. E
sinto que te fiz isso. Perdoa-me – mantive-me em silêncio. – Quando aceitaste
vir, julguei que pudéssemos falar. But I’ve
grown older and you’ve grown colder – com um suspiro mordaz, citaste a
nossa banda e soou como se a música fizesse, finalmente, sentido. Estavas a pisar
a minha fina camada de gelo e eu não deixaria isso voltar a acontecer.
– Não entres por aí – senti, na base do
esterno, o meu batimento cardíaco acelerar.
– És uma miúda que não sabe o que quer.
E eu sempre soube disso – abanou a cabeça.
– Tu aproximaste-te de mim. Tu
aproveitaste-te da miúda sozinha, desamparada! Eu apaixonei-me por ti. Meu
Deus, como me encantei! Que criança parva que fui – numa onda de gritos, as
minhas palavras saíram, ferozes como adagas. – Tu destruíste-me. Tens razão,
foi mesmo isso que fizeste – as minhas palavras feriram-te e arrependi-me
delas.
Num esgar de sofrimento, levaste as mãos
à cara e tive um vislumbre dos teus braços musculados… e do quanto gostava
deles, por serem tão morenos, tão firmes, tão quentes.
– Mas nestes seis anos que passaram, nunca
fui feliz. Não houve um único dia em que, mentalmente, não refizesse a
discussão que te levou. Seis anos, minha querida. Contas agora vinte e seis
primaveras. Cortaste os caracóis, estás mais morena, sarapintada de sardas… o
ar do campo fez-te bem…
– Cala-te! – farta, arremessei o copo
contra o espelho na parede, desfazendo-o em mil pedaços. Estremeceste com o som
estridente. Senti-me nauseada. Aquelas paredes, onde fui tantas vezes amada, abafavam-me.
Desisti de resistir – Chama por mim, outra vez. Dá-me novamente uma escada para
o Céu – caminhei até ti, como um jovem guerreiro que, no campo de batalha, se
prepara para enfrentar a morte, digno e conformado com o seu infortúnio.
E, se partir um espelho dá sete anos de
azar, toda a minha sina foi ditada naquele momento, ao som da chuva, sob o luar
débil que entrava pelas persianas empoeiradas. A lua seria sempre nossa
testemunha.
3 comentários:
Parabéns, Alice :) Foi um prazer ter-te como concorrente!
Enviei-te um e-mail importante!
parabéns alice'zoca
Adorei! :)
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Quando lia contos de fadas, eu imaginava que aquelas coisas nunca aconteciam, e agora cá estou no meio de uma! Deveria haver um livro escrito sobre mim, ah isso deveria! E quando for grande, vou escrever um...
L.C.