XIII. Tinta

Numa janela sobre o Porto pintado de magia e absinto, voou com o olhar negro as luzes do cais. De asas cansadas, pousou o olhar lasso na folha de papel virgem, adormecida sobre o parapeito de madeira azul lascada.
Mergulhou o dedo fino no copo de água e desenhou sobre a folha. Os traços afluíam todos numa folha tosca, infantil. Voltou a mergulhar o dedo e retocou o desenho.
Olhou o copo dos pincéis. Escolheu o que lhe pareceu mais delicado. Acariciou a face com as cerdas escuras, sujas de ocre seco na base. A sua pele pálida contrastava bem com o pincel. Houve tempos, em que também o seu corpo era uma tela…
Pousou a ponta do pincel sob o lábio cheio, gretado. Voltou a fitar o céu e a música que coloria aquela noite, vinda do coreto. Mordeu o pincel já, de si, cheio de marcas de indecisão.
Voltou a mergulhar na sua consciência. Embebeu o pincel n.º 4 no gobelet de tinta-da-china e pousou-o levemente sobre a base da folhinha mal desenhada. A tinta negra diluiu-se, deixando uma matiz de fundo do mar visitado pelo sol. Raiada, muito calma, tão silenciosa…
A folha cresceu, logo a li. Ganhou dimensões que ultrapassavam o tocável. Tornou-se tão bela, espelhando todas as estações que habitavam dentro do seu coração. Todas as estações lhe eram assim: líquidas, escuras, estéreis.
Fechou a janela e deitou-se na carpete vermelha de arraiolos que resgatara do sótão. Olhou o tecto, coberto de pássaros, também eles desenhados da mesma forma que aquela folha: com tinta-da-china e melancolia. 

6 comentários:

Lúcia disse...

muito obrigada Alice!!

Jéssica Cardoso disse...

Não era suposto chorar a ler isto. Não era suposto chorar esta noite. Mas aconteceu. E eu agradeço-te isso. Não sabes o que guardo, mas também te guardo a ti. Lido mal com as pessoas, lido tão bem a ler alguém como tu!

catiag disse...

gostei do blog :) *
espreita este post : http://catiiag3.blogspot.pt/2014/08/423.html

JoanaGSilva disse...

tão bom!

Anónimo disse...

Adorei :)

Jéssica Cardoso disse...

A noite cai e cai o abismo de sete sóis que crio com ela.

E é tão fácil que me entendas, se entenderes o que é escrever cartas que o correio jamais entregará.

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Quando lia contos de fadas, eu imaginava que aquelas coisas nunca aconteciam, e agora cá estou no meio de uma! Deveria haver um livro escrito sobre mim, ah isso deveria! E quando for grande, vou escrever um...
L.C.