Beijos enternecedores que me arrebatam sob a forma de memórias presas pelos fios da saudade.
XXIX. Vocabulário
Vocabulário: conjunto de palavras que nos unem e, na mesma dança violenta, nos afastam.
XXVIII. Silêncio
Vinha no jornal
Que hoje tinhas pássaros
No corpo que habitas.
Dizia, em letras maiúsculas,
Bem negras e gritantes,
Tão como os teus olhos,
Que da tua alma cheia
Transbordavam asas
E chilreios de épocas
Tão infantis quanto nós.
Vinha hoje no jornal
Que os teus lábios cerravam
O que a tua alma não.
As letras mais pequenas,
Enganadoramente sussurrantes,
Diziam que a vida de cão
Se mantém.
Fala-se de que perdeste o comboio,
Não tens guarda-chuva
E, em silêncio,
Precisas de alguém.
XXVII. Palavra
As palavras são a nossa condenação. Com palavras se ama, com palavras se odeia. E, suprema irrisão, ama-se e odeia-se com as mesmas palavras!
Eugénio de Andrade
XXV. Travessura
Nunca fui de travessuras.
Era sossegada.
Passava horas a lavar paninhos no tanque,
Com o sabão rosa que a Avó me dava.
XX. Amadurecer
Formavam-se, nas nuvens, dois arco-íris. Mas era preciso deixar de
ver o mundo para se ver o céu. E assim fiz. Pousei no chão enlameado os
figos amadurecidos que carregava no colo e sentei-me, ali mesmo, na pedra molhada
do degrau que dava para a cozinha velha.
Olhei-os, escondendo a cegueira no fundo do baú, na prateleira
mais alta de todas, onde os meus cinco pés e meio não a alcançariam. Depois
fechei as pálpebras, para ver melhor. Frugalmente, e sem grandes floreados, a
chuva beliscava-me a face quente. O sol morno de poente adocicava-me as
pálpebras finas, quase transparentes, recordando-me de braços mornos,
decadentes.
Para mim, o amor era, sempre fora, só isso: um pôr-do-sol morno,
decadente.
Quando Vier a Primavera
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera
passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância
nenhuma
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão
no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.
Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter
preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.
Alberto Caeiro, in Poemas Inconjuntos
XIX. Beijar
Sinto-me
como se já não sentisse nada. Aliás, sinto mesmo que é isso que sinto: nada.
Preciso
mesmo deste inverno que se avizinha. Preciso de sentir a chuva a lavar-me o
rosto. Que o vento me sacuda os cabelos e que as minhas mãos gelem, até que
doam.
Só
posso acolher, de braços abertos, uma estação tão tempestuosa e mal-amada como eu.
Só posso recebê-la no peito como quem recebe, em casa, um amigo, há muito
distante. Só posso beijar este meu lado natural e tentar aquecer-lhe as faces,
em busca deste tempo perdido que foi o tempo em que amei sem saber.
E
agora, que sei que não amo mais, dói-me. Porque os pesadelos continuam a perseguir-me,
qual animal indefeso.
Já
só espero voltar a encontrar-me noutro corpo.
XVIII. Nunca
A
chuva caía sobre a rua de paralelos incertos. No fumo lúgubre daquela manhã,
respirava-se os vapores da cidade dos becos escuros, das casas em ruínas, do
jazz abandonado. Aquela cidade perdera o brilho, perdera a honra do amanhecer
em glória, perdera o deambular devaneador das promessas rubras.
A
cidade tornara-se azul permanentemente, o céu cinzento e as tintas de todos
aqueles edifícios, outrora magnificentes, sumptuosos, escorriam, em direcção às
grades do esgoto. As pedras deslavadas perderam o calor do sol e as aves
fugiram sem aviso prévio.
Os
transeuntes daquelas ruas perderam a individualidade. Eram todos iguais,
vestiam-se todos em tons neutros. Mexiam-se, sem nunca se moverem. Atravessavam
as ruas e eu, sem nunca reparar nas cores dos semáforos, via-os. Quis-me
parecer que iam todos para o mesmo lugar: para lado nenhum.
Não
tinham motivos. Não podiam ter. Acabara-se a ideia do sonho. Já nenhum fio de
vontade os prendia à vida.
Não
havia um único ser-vivo naquela cidade. Morreram todos. O que existia eram
sombras de seres. A sombra de serem alguém. Eram coisas que existiam ali, sem
quaisquer propósitos.
A
inverosimilhança de se tornarem donos das suas figuras espectrais agredia-me. Também
eu já não me encontrava, não mais, ali. Já não era dona de nada, como antigamente
fora. Já não podia pedir nada, por me terem tirado tudo: as cálidas promessas
de banco de jardim, o trompete que, todos os dias, me brindava com uma interpretação
da «Nature Boy», de Nat King Cole. Era desafinado, por vezes, mas era tão
familiar e acolhedor. Era um pouquinho de casa.
Eu
soube, naquele dia, que nunca mais ira viver no mundo que me tinha sido
apresentado naquela cidade, outrora nossa. Eu soube que se fechasse os olhos,
já nem te veria, já não te ouviria a citar Pessoa e a louvar Camões ou
Florbela. Eras tão deles e eu tão tua e, naquele momento, tão de ninguém, como
se o meu mundo fosse então composto por partículas atmosféricas que se fixavam
aos meus pulmões, impedindo-me de respirar.
XVII. Colaborar
Gosto quando parece que as coisas jogam a meu favor; quando a vida me dá a água e o copo também.
XVI. Prover
Tudo em mim é eco. Sou feita deste espaço vazio, de tudo o que toquei, de tudo o que vi; é isso que a minha vida é.
Tenho a barriga vazia, os bolsos rompidos, a mente dispersa, o coração abandonado. Estou desprovida de saudades, acabaram-se os cigarros que me ajudavam a matar o tempo e ocupo-me com as emoções alheias que os livros me dão. É disso que faço as horas que passo a olhar as paredes, as riquezas das loiças de cristal, as molduras de prata, os móveis retorcidos.
Segui a luz errada e finjo para mim mesma.
XV. Responsabilidade
E é quando me ponho a pensar que chego à conclusão de que sou responsável pelo que não fui; pelo que não sou.
XIV. Branco
Tens as mãos geladas e os dentes cerrados. O olhar posto em debandada, arrepiado. Arregalas os olhos, admirado com a corrente selvagem das águas deste rio em que nos afogamos. Tudo o que leio em ti é loucura e marcas de café e a necessidade de fazer o teu mundo correr tão avidamente quanto este mesmo rio que vibra sob os nossos pés. A necessidade de fazer o teu céu tão claro e tão leve quanto o fumo do teu cigarro, nesta manha fria. A necessidade de fazer chuva (e eu que a entendo tão bem) e de criar algo intemporal.
Porra - dizes-me -, é tudo tão rápido.
XIII. Tinta
Numa
janela sobre o Porto pintado de magia e absinto, voou com o olhar negro as luzes
do cais. De asas cansadas, pousou o olhar lasso na folha de papel virgem,
adormecida sobre o parapeito de madeira azul lascada.
Mergulhou
o dedo fino no copo de água e desenhou sobre a folha. Os traços afluíam todos
numa folha tosca, infantil. Voltou a mergulhar o dedo e retocou o desenho.
Olhou
o copo dos pincéis. Escolheu o que lhe pareceu mais delicado. Acariciou a face
com as cerdas escuras, sujas de ocre seco na base. A sua pele pálida contrastava
bem com o pincel. Houve tempos, em que também o seu corpo era uma tela…
Pousou
a ponta do pincel sob o lábio cheio, gretado. Voltou a fitar o céu e a música
que coloria aquela noite, vinda do coreto. Mordeu o pincel já, de si, cheio de
marcas de indecisão.
Voltou
a mergulhar na sua consciência. Embebeu o pincel n.º 4 no gobelet de tinta-da-china e pousou-o levemente sobre a base da
folhinha mal desenhada. A tinta negra diluiu-se, deixando uma matiz de fundo do
mar visitado pelo sol. Raiada, muito calma, tão silenciosa…
A
folha cresceu, logo a li. Ganhou dimensões que ultrapassavam o tocável. Tornou-se
tão bela, espelhando todas as estações que habitavam dentro do seu coração. Todas
as estações lhe eram assim: líquidas, escuras, estéreis.
Fechou
a janela e deitou-se na carpete vermelha de arraiolos que resgatara do sótão. Olhou
o tecto, coberto de pássaros, também eles desenhados da mesma forma que aquela
folha: com tinta-da-china e melancolia.
Fuga
Neste telhado
Cantas, pulmões, o refrão
Ao luar, cisne.
/
Talvez, se em refrões
Houver a luz de sempre,
Se viva o hoje.
/
Porque...
O princípio é
O fim de todos nós e,
Quando não me olhas,
...
Tudo isto o é
Sem norte ou maré de
Sorte. Serenei.
Alice
七コンマ九点
Sem entender para que serviam as flores, colheu uma. Julgava-se senhor dos dias e, aos seus olhos, ele poderia ser o dono das flores e do destino que lhes fosse fadado.
Serviu-se de todas aquelas cores e essências que o rodeavam e ungiu-se,
criança tola. Vivia de sonhos. Mas ia vivendo. E que continuasse assim, a viver
daquela sensação de lusco-fusco. A mente não se resolvia e o coração não ia
pensando. Sim, porque o coração dele pensava. Oh, se pensava.
XII. Ternura
Ele tinha um daqueles nomes muito simples. Tipicamente português. Era
como Manuel, ou Joaquim. Ou José.
Não interessa!
O que importa é que ele era assim, feito de simplicidade. Tanto nas
palavras como nos movimentos. Não ia com muitas coisas; preferia beber água da
torneira e não se preocupava com as capas dos livros.
Mas ai de quem lhe vincasse uma página!
E, ainda assim, era muito senhor de si mesmo. Queria que o mundo
fosse como ele o descrevia. Queria governar o país!
Onde já se viu? Alguém tão inteligente a meter-se na política…
Ele queria mundos e fundos, no que toca a sonhos e vontades.
Ui, se queria!
Claro está, falhava. E pecava por decidir falhar sozinho. Sem pedir
a alguém que lhe segurasse nas pontas enquanto desfazia os nós. Pecava (e
falhava) por deitar de parte os únicos sorrisos que nunca lhe foram oferecidos
de má vontade.
Vivia sozinho por negar a ternura dos braços de quem, no mundo, mais
o queria abraçar.
Talvez, um dia, aquele homem de nome comum aprenda a deixar-se ser
abraçado.
XI. Salada
São mimos de infância as saladas de fruta
com maracujás do jardim da vizinha e
figos, lá da figueira grande, junto ao galinheiro.
X. Moda
Conheci um músico, uma vez. Ou melhor, já houve várias
vezes em que conheci músicos. Mas aquele era um músico especial. Melhor – ele era a própria música. Na altura, contou que tocava violoncelo e cantou que dava
uns toques na gaita-de-foles que lhe foi passada por nome. Tocava só umas
modinhas. Coisa pouca.
Conheci esse músico, dessa vez. Ou melhor, conheci-me a mim, nele.
VIII. Resposta
Hoje choveu cá dentro. Temi que fosse trovejar, mas ficaste-te por aí. Sopraste-me, no teu tão próprio acto de ser e permaneceste aí: intocável. Li o teu olhar; sabia que procuravas no meu corpo a resposta à tua indiferença fingida.
Pois, bem... Seca-te à luz até que se expire, nas areias do tempo, o tempo que precisei para deixar de precisar dessa seiva venenosa.
VII. Meninice
(Olha: é imperativo que leias este texto ao som desta música!)
Era para
ser Mafalda, mas nasceu Alice de vários corações e muitas feições. Começou a
caminhar cedo demais e aprendeu a falar sem que lhe pedissem.
Escrever,
foi outra conversa. Começou com um A muito torto, mas lá lhe foi dando o jeito e, como quem não
quer a coisa, na primavera seguinte, já andava a contar histórias inventadas por ela. Fazia castelos
com livros do Winnie the Pooh e muralhas com histórias sobre bruxas e magos, princesas, maçãs e sapos. E chorava porque queria ler mais do que o que as imagens permitiam à sua imaginação e não conseguia. A Mãe sempre lhe dissera que ela deveria ser actriz – chorava quando queria.
Usava
sempre blusas de bolsinhos bordados, saias laranja-abóbora, soquetes com folho rendado e as botas ortopédicas azuis-marinho; um laço nos caracóis e
a pulseirinha de oiro no pulso gorducho. A pulseira que a Avó lhe tinha dado.
Passava horas a brincar com folhas de hortelã-pimenta e bolas de sabão. Tinha uma
teimosia muito natural, uma pacatez quimérica muito floral e um jeito para o
desenho muito próprio.
Era feita de muito.
Era feita de muito.
...
Hoje, há
uma casa em ruinas, de paredes cor-de-rosa. A casa da sua infância. E, pelo
meio dos escombros, está a tábua da mesa da cozinha, toda rabiscada de lápis-de-cera
amarelo, que era a cor que pegava melhor na madeira por envernizar.
VI. Série
She
has enough pent-up sexual energy to power a small Midwestern city.
- Angela about Brennan,
in Bones (2005)
V. Sublime
Naquela rua erma, de direcção vaga, havia uma casa em adobe, com um jardim cinzelado
pela mão divina de alguém que passa o tempo entre ilusões, sorrisos e
coisas doces.
Dentro da casa, os tapetes rasgados provavam isso mesmo. A sua ilusória
existência. Os jogos de porcelana, cuidadosamente pintada à mão, que jaziam,
quebrados, no chão, gritavam que ali o terror era enorme.
E eram tantas as palavras que ficavam por dizer, à porta daquela casa, quando
as macieiras estavam em flor, que nem ele se arriscava a mostrar mais do que o
jardim.
E viva na sublime mentira de sobreviver.
IV. Nobreza
Nobreza é... É uma coroa de papel e um castelo feito de todas as pedrinhas que encontramos na calçada, decorado com todos os sonhos do Jardim Botânico.
Tag 5 perguntas
Ainda assim, é preciso cumprir algumas regras:
-
Quem nomeia deve fazer cinco perguntas ao blogger que nomeou, e as perguntas só podem
ser relativas ao blog;
-
Na publicação em que respondemos às perguntas, temos que deixar os links dos blogs
a quem passamos a Tag;
-
O blog que for desafiado deve deixar na Tag quem o desafiou;
-
Devemos informar os blogs que nomeamos, e estes, devem responder no post se
aceitam o desafio.
E então, a Mel foi uma querida e fez-me estas perguntas:
1.
O teu blog espelha quem tu és?
Acho
que sim. Pelo menos, uma parte de mim. Talvez, a parte mais sentimental, mais
melancólica. Porque a Alice animada, sorridente, que dança ao som de The Smiths
e que adora almoços demorados com os amigos na pizzeria nem sempre se dá a
conhecer.
Mas
essencialmente, sim. O meu blog espelha a vida aos olhos de alguém que foi
feito para as artes!
2. O que achas dos teus seguidores?
Sinceramente,
não ligo aos seguidores. Ligo aos amigos que tenho feito por aqui, às pessoas
que têm sempre uma opinião a dar, uma história em comum para partilhar, e um
conselho para se fazer ouvir. E é a essas poucas pessoas que eu agradeço o
apoio e as palavras nos momentos certos!
3. Qual é o assunto que mais escreves no blog?
Pff…
é que não sei! Eu. Eu sou o assunto principal. Os outros temas são aquilo que
me rodeia. Os meus problemas, as minhas paixões, a minha visão sobre o mundo e
as coisas que mexem comigo, sejam elas artistas ou músicas, ou simples
fotografias…
4.
Qual é a importância que o blog tem no teu dia-a-dia?
O
meu blog não é um diário. Nunca foi. Mas mentiria se dissesse que não venho cá
todos os dias, várias vezes ao dia. Mesmo quando não escrevo nada (porque gosto
de escrever com calma), leio os blogs que sigo (muitas vezes em silêncio, coisa
que lamento, mas acho que sou demasiado tímida para comentar os outros blogs –
reconheço isso em mim). Mas o meu blog é essencial para mim!
5.
Pretendes permanecer na blogosfera por muito tempo?
No
que depender de mim, não vou sair daqui tão cedo! Escrever define-me e eu sinto
mesmo necessidade de escrever, porque liberto energias, desfaço nós e crio
sonhos. Materializo-os. E isso preenche-me.
Espero que gostem tanto de responder a estas perguntas, como que gostei de responder às da Mel, a quem agradeço mais uma vez!
Os blogs que eu nomeio são:
- Diário de Bordo, da Jessica
- diário de bordo, da Bé
- Reinventei-me com Palavras, da Lúcia
- De jardins vivo, de jardins morro, da Pê
- silence isn't awkward, da Nês
E as minhas perguntas são:
1.º: Há quanto tempo tens blog?
2.º: O que é que te levou a criar o teu blog?
3.º: O que é que te levou a dar o nome ao blog?
4.º: Partilhaste o teu blog com algum amigo ou com alguém que conheças, ou é segredo?
5.º: O que mais gostas, aqui no mundo da blogosfera?
Espero que gostem tanto de responder a estas perguntas, como que gostei de responder às da Mel, a quem agradeço mais uma vez!
Alice no País das Maravilhas
Hoje acordei com o peso de enormes penedos sobre as pálpebras. O calor do quarto despertou-me o corpo suado ainda não eram as sete horas. Dormi... quatro horas.
Mas depois acordei. Acordei mesmo, consciente dos dias que me esperam. Acho que finalmente encontrei um rumo. As coisas estão finalmente a fazer sentido e há sonhos, que julgava adormecidos, a renascer e a dar-me vontade de viver.
Sinceramente, é a primeira vez, em muito tempo, que me sinto assim: feliz.
Mas depois acordei. Acordei mesmo, consciente dos dias que me esperam. Acho que finalmente encontrei um rumo. As coisas estão finalmente a fazer sentido e há sonhos, que julgava adormecidos, a renascer e a dar-me vontade de viver.
Sinceramente, é a primeira vez, em muito tempo, que me sinto assim: feliz.
II. Sofá
Por vezes, sinto a alma a pesar e a precisar, sobretudo, de chá e sossego. Como que para aclarar as ideias e reavaliar os passos a dar. Nunca os que já foram dados. A ideia é nunca olhar para trás. A ideia é esquecer as portas que se fecham a cada segundo que passa e medir as pontes que se lançam aos nossos pés.
A inspiração feita no passado, não nos livrará de morrermos asfixiados no futuro. Então é preciso continuar a respirar e resistir neste mundo.
A inspiração feita no passado, não nos livrará de morrermos asfixiados no futuro. Então é preciso continuar a respirar e resistir neste mundo.
Por vezes, quando sinto a alma cansada, sento-me no sofá para descansar os pés e recuperar o fôlego. E é assim que (sobre)vivo.
Amor de fim de Verão
Eu
conseguia imaginar-me a esbarrar todos os dias contra a tua pupila, mesmo
naqueles dias em que as grades do metro esfumaçam a passagem das pessoas pelo
tempo.
E
a passagem do tempo pelas pessoas.
Eu
conseguia imaginar-me a ir, em direcção àqueles ventos solares que tanto me
atraem, porque não passam de prolongamentos de ti, e do emaranhado que são os
teus pensamentos.
E
da metáfora que os teus caracóis ruivos são.
E
eu via-me nesses movimentos aleatórios, aos saltos, pela avenida abaixo, a
correr, como um louco, com um sorriso na cara, à tua procura, naquela nossa
cidade que fizeste tão tua, sem que te apercebesses.
Eu
sabia que deverias andar por ali. As ruas cheiravam a ti, e a estação também e
na torre da Sé, o relógio marcava a tua hora. Eram três horas da tarde e o ponteiro
mais comprido marcava os catorze minutos e era a tua hora e eu esperava-te a
qualquer segundo, a virar uma esquina, de botas pretas e livro na mão.
Então
eu vi-te! De repente, e como quem não quer a coisa, lá estavas tu, caramba! E corri!, não fosses fugir-me outra vez, rapariga. E eras ligeira e de nariz
empinado. E então, lá corri. Estavas a chegar à estatueta do ardina e eu quase
pensei que gostava de te mandar um postal com uma fotografia do céu daquela tarde, e da magnólia que estava coberta de flores brancas. Estava tão bonita, e tu também estavas muito bonita... e lá passaste, com os teus óculos redondos, de haste dourada e eu vi as flores reflectidas nas
lentes escuras.
Estava tão perto de ti e de te alcançar, quase toquei no teu blusão de ganga e…
Estava tão perto de ti e de te alcançar, quase toquei no teu blusão de ganga e…
I. Metáfora
Falavam
por horas e horas sobre carências e asas, perdas e falhas. Falavam de tudo; eram duas
páginas do mesmo livro – quando o mundo fechava o livro para descansar os
olhos, eles, as páginas, ficavam sempre juntos, peito com peito, abraçados. Ela era a catorze, que começava com uma frase simples sobre o quanto as ervilhas
demoraram a crescer naquele ano, e ele a quinze, que era um monólogo pequeno sobre
as ervilhas e o mau tempo que as tinha atrasado.