Numa
janela sobre o Porto pintado de magia e absinto, voou com o olhar negro as luzes
do cais. De asas cansadas, pousou o olhar lasso na folha de papel virgem,
adormecida sobre o parapeito de madeira azul lascada.
Mergulhou
o dedo fino no copo de água e desenhou sobre a folha. Os traços afluíam todos
numa folha tosca, infantil. Voltou a mergulhar o dedo e retocou o desenho.
Olhou
o copo dos pincéis. Escolheu o que lhe pareceu mais delicado. Acariciou a face
com as cerdas escuras, sujas de ocre seco na base. A sua pele pálida contrastava
bem com o pincel. Houve tempos, em que também o seu corpo era uma tela…
Pousou
a ponta do pincel sob o lábio cheio, gretado. Voltou a fitar o céu e a música
que coloria aquela noite, vinda do coreto. Mordeu o pincel já, de si, cheio de
marcas de indecisão.
Voltou
a mergulhar na sua consciência. Embebeu o pincel n.º 4 no gobelet de tinta-da-china e pousou-o levemente sobre a base da
folhinha mal desenhada. A tinta negra diluiu-se, deixando uma matiz de fundo do
mar visitado pelo sol. Raiada, muito calma, tão silenciosa…
A
folha cresceu, logo a li. Ganhou dimensões que ultrapassavam o tocável. Tornou-se
tão bela, espelhando todas as estações que habitavam dentro do seu coração. Todas
as estações lhe eram assim: líquidas, escuras, estéreis.
Fechou
a janela e deitou-se na carpete vermelha de arraiolos que resgatara do sótão. Olhou
o tecto, coberto de pássaros, também eles desenhados da mesma forma que aquela
folha: com tinta-da-china e melancolia.
6 comentários:
muito obrigada Alice!!
Não era suposto chorar a ler isto. Não era suposto chorar esta noite. Mas aconteceu. E eu agradeço-te isso. Não sabes o que guardo, mas também te guardo a ti. Lido mal com as pessoas, lido tão bem a ler alguém como tu!
gostei do blog :) *
espreita este post : http://catiiag3.blogspot.pt/2014/08/423.html
tão bom!
Adorei :)
A noite cai e cai o abismo de sete sóis que crio com ela.
E é tão fácil que me entendas, se entenderes o que é escrever cartas que o correio jamais entregará.
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Quando lia contos de fadas, eu imaginava que aquelas coisas nunca aconteciam, e agora cá estou no meio de uma! Deveria haver um livro escrito sobre mim, ah isso deveria! E quando for grande, vou escrever um...
L.C.