XXXI. Justo




Navegávamos na lua, numa pequena e sossegada embarcação, feita de teclas de piano, atadas de forma justa com caudas de cometas. Estávamos num sono hipnótico, e víamos as cores que não existem nos espectros terrenos, tocávamos naquelas nuvens de pó de estrela e sorríamos como crianças à chuva.
Tudo à nossa volta era feito de espelho e a vida corria o seu curso natural. Éramos felizes assim.

Mil setecentas e setenta e quatro páginas de amor

in Outlander, by Diana Gabaldon

6:54

Como será a alvorada do dia em que eu já cá não estiver?




Tonight, I love you, once again.
Skin on skin, the night belongs to lovers.
Skin against skin, the moon is for the lovers, for the poets and for the hookers.
And we fell from the sky: black wings and tarnished blood. We are lovers, we are poets and we give ourselves to the flesh, as streetwalkers.
Tonight is ours. 

XXX. Tolice

Passavam no café onde os velhos costumavam estar sentados a discutir política e futebol. Ela de galochas amarelas e ele com umas botas de camurça coçadas. Ela às costas dele, calçada abaixo, às gargalhadas; coroa de flores e aura ametista; agarrada ao pescoço dele; barba por fazer havia vários dias e o cachecol azul de lã.
Lá vai a menina girassol, tonta de amor.

XXIX. Proteger

Abro o armário e o teu cheiro ainda reside na madeira de pinho. Os teus poemas, colados ao espelho da porta, ainda me envolvem, como prolongamentos dos teus dedos, selando o espaço que me cerca. Os lençóis sujos ainda jazem no chão. Todas as tuas memórias, esqueletos de ti, me protegem de voltar ao mundo que me foi tirado na tua hora.

XXVIII. Troca


Há dias em que rasgo as asas às borboletas. Há dias em que o fundo do mar me sabe a casa e há dias em que não me reconheço ao espelho. Há dias em que troco de corpo e passo a ter várias Alices no mundo. Nesses dias, sou a Rita dos cabelos negros e a Simone de outros sorrisos. Sou a Margaux de outros tempos, dos fatos de banho com folhos, dos batidos de Coca-Cola e das coroas de flores.
Há dias em que o mundo se enriquece de mins. 

Hoje sou-me...

... ao som de Debussy: Maid With Flaxen Hair,
interpretado pela Slovak Radio Symphony Orchestra.


XXVII. Madrugada








Queiram nunca adormecer e viver, eternamente, em busca de ilhas maiores e de espíritos superiores. Viver a madrugada, dançar com Hemingway, em Paris; daiquiri na mão e um sopro de quem quer tudo. Este mundo é rápido, mas a madrugada é vossa.

XXVI. Surpresa



Resvalava na enfermidade dos dias, todos as manhãs, perdida entre cappuccinos nas ruas estreitas, de óculos negros. Já não era, para ela, uma surpresa ver a necessidade com que o rapaz de camisa vermelha axadrezada fumava, pela manhã, à porta do liceu. Habituara-se a ele e aos olhares cúmplices que lançavam, como se se lessem sem querer. Gostavam-se assim, longe e em silêncio. Como duas lagoas siamesas. 

XXV. Caricaturar

Tenho pensamentos que,
se pudesse revelá-los e fazê-los viver,
acrescentariam nova luminosidade às estrelas,
nova beleza ao mundo
e maior amor ao coração dos homens.


O Eu profundo e os outros Eu, by Fernando Pessoa

XXIV. Sal







O sal murcha as flores, queima as plantas. O sal adoece a terra e tu tem-no no teu beijo.

The more you change, the less you feel.


by The Smashing Pumpkins

XXIII. Arte






D’arte percebes o que respiras do mundo e dás-me do mundo o que expiras de ti. Dar-te assim, sem pedir de mim, é o tesouro de nós.

XXII. Hábito

Hábito é... É acordar-te como quem faz uma flor desabrochar e saber de ti, como quem se vê ao espelho. Hábito é sussurrar-te mundos e fundos e conservar-te guardado entre véus e alvoradas e entre chuvas de nadas, como se o tudo fosse certo e o amanhã nascesse em ti, nos teus jardins e na ponta da tua caneta. Como se o mundo fosse sem que o quisesse, sem que se apercebesse disso e todas as coisas acontecessem sem que lhes fosse permitido, senão por ti, que te habituaste a ser todas as estações.

XXI. Suspirar

Apanhou o cabelo, descontraidamente, ciente de que, não tardaria, iria soltar-se. As pontas onduladas que lhe pendiam sobre a testa colavam-se à face húmida.
Sentou-se na beira da cama e suspirou. Talvez por ter voltado a dar-se ao pecado de cair novamente no precipício que era a luxúria dele.
Estava nua e sentia o seu hálito a gin sobre a sua pele; tinha os dedos fantasmagóricos, ainda lodosos, da queda. Ainda sentia o seu arfar no pescoço arrepiado e a força com que a imobilizava, como um ser possuído, doente. Sentia a forma como lhe tocava, docemente e, contra o relógio, deambulava sobre o seu corpo, conhecendo as montanhas e os vales da sua pele.
Fechou os olhos e viu-o, para além das cortinas, a suspirar também, como um sol de Março, quente, promissor, a pedir perdão e a renascer, como uma fénix.
Abriu os olhos e voltou-se. Lá estava ele, sobre as ondas daquele amor louco e impaciente, do outro lado da cama. De olhos fechados, a tremer. Ele era o Alfa e o Ómega, o princípio e o fim; um vulcão e uma nuvem; fúria e paz. Ele fazia o tempo e parava-o dentro dela, a seu belo capricho.
Mas, no fundo, eram só aves alienadas… entre suspiros e conversas de café. Eram só um sonho dela.

XX. Promessa

Aprendi, com a queda das folhas, que fugir por corredores vorticosos era perigoso para quem, como eu, se perdia por pensamentos leves e alados.
Era doloroso para quem, como eu, de pés pequenos, acreditava em promessas felizes, vãs e bondosas. Até ter deixado de apostar nas noites de azar que me consumiam a mente e as folhas amareladas, com marcas de chá. As promessas são sombras incumpridas e ridículas de um passado que nunca virará a página para ler a última alvorada.

Blue 50's queen


The power of youth is on my mind,
Sunsets, small town, I'm out of time.
Will you still love me when I shine,
From words but not from beauty?

My father's love was always strong,
My mother's glamour lives on and on,
Yet still inside I felt alone,
For reasons unknown to me.

Old Money, by Lana del Rey

XIX. Pé









Pés mordazes, língua de fogo e as mãos de quem desfaz em migalhas o pão e o amor. E, mesmo assim, não consigo matar uma abelha. 

A, plain A, in the morning


XVIII. Apalavrar






Como um copo que se enche de água fresca, preciso de apalavrar para contar o movimento do sol.

XVII. Belas-artes

Para mim, é isto:

Almond Blossom, by Vincent van Gogh

Danae, by Gustav Klimt

Le Désespéré, by Gustave Courbet

XVI. Contemplar



Sinto falta de contemplar o oceano ao anoitecer e do cheiro que o som do Atlântico salpica ao ribombar durante a noite, nas rochas lodosas do paredão, na Praia dos Pescadores.
Consome-me a falta de algo doce que me preencha o paladar de sensações e me encha a barriga de satisfação. 
Bah... sinto-me insaciável. 

I remember you well in the Chelsea Hotel

You told me again you preferred handsome men
But for me you would make an exception

         Chelsea Hotel N.º 2, by Lana del Rey

XV. Três








Trezentos e trinta e três poderia ser
o seu número de mentiras perfeitas
contadas a almas ingénuas como a dela. 

XIV. Joaninha










Ladybugs all dressed in red
Strolling through the flowerbed.
If I were tiny just like you
I'd creep among the flowers too!

[Apagar-me]

         

              Apagar-me,
              diluir-me,
              desmanchar-me
              até que depois 
              de mim,
              de nós,
              de tudo
              não reste mais 
              que o charme.


Paulo Leminski

XIII. Traço





Uma das palavras mais belas que guardo no caderno preto: traço.
Das mais florais, ainda que cheias de traços hidropónicos. Das mais musicais, ainda que dissonantes e cheias de contratempos.
Envolvo as letras cuidadosamente para não te ferir a pele, como se o teu corpo fosse um mapa para a terra onde o amor não apodrece e o céu não amanhece. Um mapa ancestral cheio de marcas de estrelas que me guiam pelos caminhos letárgicos pós-orgasmo.
Nos traços do teu corpo, entranço o meu, atraída para o núcleo da rosa que manténs dentro de ti, em contagem decrescente para o final do sonho e início da vida abstracta. A verdadeira vida. No meu caderno preto, perdido entre traços convexos.

E foi assim que se passaram quinze dias...



...quinze dias cheios de magia, arte, música.
Cheiros, luzes, toques, beijos e abraços. Lágrimas.
Fogaças, chamoa e hidromel.
Mãos sujas, peles suadas, tranças desfeitas.
Ver o dia nascer, ver o anoitecer,
ver a outra dimensão ao lado das melhores pessoas.
Obrigada a todos por estes dias fantásticos.
Em especial àqueles de quem não me despedi.

Até para o ano!



XII. Sortido





A minha infância nestas latas (que, muitas vezes, não passavam de latas de costura).

Robin Williams (1951 - 2014)

in Dead Poets Society (1989)

XI. Construir

É necessário construir lares para tantos corações sem abrigo. Tantas moradas desabitadas a precisar duma porta que feche sem deixar entrar o frio da rua, duma janela que seja limpa para que a sua paisagem deixe de ser fuligem negra.
É mesmo isso que eu quero. Um lar que exista para além das minhas palavras.

X. Protestar




Vivo para atingir o melhor dos dias. Não posso eu pedir outra coisa, senão o melhor dos dias. Porque se eu não conseguir o que de melhor se faz por cá, nesta dimensão, o que posso eu esperar de mim? Viver presa, sem revolta, conforme manda a lei? Eu e Deus deixamos de nos dar; agora vivo por mim e ele ora por mim. Ora? Ora mesmo?
Seja como for, sou uma águia; sou um gato selvagem; olhos de lince.
E é esse o meu protesto mais silencioso: a liberdade de pensamento e agilidade com que me movo até à luz.

IX. Veneno









Trinta moedas. Mão sobre a boca. Lábios no pescoço: é com todas estas coisas que me despes e fazes tua, à tua mercê.
És veneno, perfeito em sentenças vagas e gemidos exasperados.
E rendo-me. A cada passo teu. Cega nesta loucura que me vai moendo cativa nos teus braços.

VIII. Sumariar

Folheei o livro de capa acinzentada, dobrada nas pontas, com manchas de chá nas laterais. Cheirava a chá velho.
As palavras mofosas sublinhadas pelas mãos por onde já andara não faziam qualquer sentido para alguém tão apressado quanto eu, com o sangue tão fervente.
Do outro lado do café, o teu corpo quebrara, de chávena vazia, inverno próximo. Existias na melhor das estações, dormente de tudo o que brotou noutrora. Tudo em ti era mudança, não tivesses nascido tu numa fase de transição de luz entre os corpos celestes.
Olhavas-me, mas não me vias. Tampouco reparavas em mim e no café que soprava, sem despossar os olhos dos teus.
Voltei a folhear o livro, desassossegadamente. Atentei, como que um quase-acaso, numa frase: não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram.
Como pode alguém resumir tanto um amor que só existira, de novo, cem anos depois? 

VII. Licenciatura







Já nasci boémia por várias vezes, sempre aspirando a todas as decomposições prismáticas, sempre querendo ver para além das coisas que se eclipsavam aos meus pés.
Nunca nasci para viver agarrada a uma casa, uma sopa, um papel. Eu sou do mundo, nascida e criada na urze dos dias, velada por flores por inventar, escondida nas cascatas mais bonitas, que escrevia quando era pequena, no caderninho amarelo.

VI. Momento







Impulsos que nascem na boca e alimentam os sentidos até à exaustão das carnes, entre laços apertados e manhãs de nevoeiro.
Impulsos criadores de momentos de arrependimento. 

V. Neutro



De espanto
E de branco
Circula
Na corda bamba,
Cicuta
Na língua.
No peito
A traição.

Na redoma
A rosa.
Constante,
Dos espinhos
Neutra,
Pérfida ao som
Da lira,
Se lança
E delira
Na dança guerreira.
Alice

IV. Negociar

Não sabia que a combinação perfeita entre o mundo e a memória residia dentro da jarra de hidrângeas que apodreciam vagarosamente, ao som tiquetaqueante do pêndulo dourado do relógio de sala que lhe perturbava o sono.
Tentava fechar os olhos; negociava com o cérebro que aquele era o momento em que deveria adormecer. Esquecer todos os problemas que a sacudiam e atiravam ao chão de gravilha. As mãos pequenas e os joelhos escuros estavam arranhados, assemelhando-a a uma penitente involuntária.
Não reconhecia os olhares espasmódicos do espelho que a fitava, assustado, ainda com sete azarados anos a decorrerem-lhe na fita métrica do louco e bêbado tempo, tão pouco sóbrio de si quanto do que pensava pensar sobre o pensamento humano; cansado, de coração apertado.

III. Saudade




Um sentimento tão lusitano, nascido nas praias de visionários e conquistadores, habita o seu peito; nos mais recônditos cestos de flores do seu coração.

II. Luz








Luz são olhos verdes a fazer a vida renascer de onde se escondeu nas décadas de terror.

I. Belas-letras




Contemplar os trezentos fantasmas que compunham sonetos na sua pele tornara-se um vício aos olhos de alguém que perdera o amor-próprio e achara a demência nas fontes esverdeadas.
Observava-o, como se ele fosse de marfim, tão bem talhado quanto a lua que os guiava, tão negro quanto o manto que os cobria.
Estavam tão sós quanto pompeus celebrados pelo tempo.

Isto... SOU EU!

A vida ganha uma nova tonalidade quando se faz o que se gosta: representar!
Dez dias plenos em música, magia, história e misticismo!

#Honra e Paixão