Ainda não amanheceu...
XXXI. Repousar
A cabeça de um louco move-se em órbita. Louca e distante, tão de si, como dos outros em si mesmo.
Não dorme, não descansa, não fecha os olhos. Suspende-se entre relances e sonhos e coisas que não pode descrever por conhecer apenas dentro de si mesmo, nos segundos que lhe são acrescidos pelo sol que bate de repente. E foge.
E um louco é assim; energético! Não repousa, não tem tempo para isso, nem necessidade. Ainda existem muitos relógios para serrem afinados!
XXX. Senão
Na margem do Nilo, vivia eu, pronta para te oferecer mil e uma histórias de faraós e príncipes de outras moradas. Pronta a cobrir-te de leite, de ouro e de rosas. Pronta a fazer-te, a ti, Senhor do Mundo. Serias o novo deus no deserto, um novo olhar, umas novas mãos.
Brindaríamos todas as manhãs pela bênção do desejo. Chamar-te-ia para as profundezas do rio, cada vez mais fundo...
Mas o que estou eu a dizer? Tu não existes! Esse é o meu único senão!
XXIX. Solidariedade
Num acto de fé, benze-se. Faz o sinal da cruz sobre a testa húmida, tocando com as pontas dos dedos no cabelo que lhe cai, negro e sujo de pó e suor. Desce até ao peito, onde guarda os seus segredos, as dores e os desamores. Ombro esquerdo e depois, num acto pausado, o direito.
Ora por amor, ora por paz e talvez por alguém novo. Nunca se curvará perante ninguém, nunca se ajoelhará aos pés de outro senão dele mesmo.
Ora por amor, ora por paz e talvez por alguém novo. Nunca se curvará perante ninguém, nunca se ajoelhará aos pés de outro senão dele mesmo.
Segue caminho, sem saber para onde ir, guiado apenas pelos seus pés, sem pensamentos, focado nas pessoas com quem se cruza.
Ao descer a rua, vê dois miúdos a cobiçar umas camisolas dos Led Zeppelin junto à montra de uma loja. Dirige-se a eles e observa a placa com o preço. Os miúdos observam-no, sem entenderem como é possível que alguém com ar de homem das cavernas possa conhecer as bandas da moda.
Olha-os de relance, esboça um sorriso e abre a carteira. Dá-lhes três escudos. Tudo o que lhe sobra do ordenado de fevereiro, do trabalho no café.
Lá, para onde vai, não precisará de dinheiro algum. Lá, não se fazem contas aos bolsos.
Continua a caminhar, rumo ao tempo e, perplexos, os miúdos correm para dentro da loja, gritando obrigados!.
Agora sorri, mais leve. Repara que se dirige ao rio. Está nevoeiro e os cafés estão às moscas. Sem qualquer pensamento impeditivo, descalça-se dos Nikes velhos e empoeirados, tira a camisola manchada pelo tempo e pela falta de cuidados e mergulha.
Assim que sente a água gelada em contacto com a pele dos braços, da cabeça, das costas e da barriga, sabe que está em paz. Não sabe para onde vai, mas sabe que se encontrou.
XXVIII. Treze
Poderia contar as vezes em que te perdi para outros braços e outros beijos. Noutros lençóis que não os meus, ou no chão de outra casa que não o nosso lar.
Se chorasse sangue por cada vez que escrevi palavras em vão a teu respeito, viveria cega para nunca mais ver os teus olhos loucos e para ser sempre cinzento o meu céu. Deixaria de ter céu, na verdade.
Todos os dias são sextas-feiras de azar.
XXVII. Saborear
Tenho saudades do bolo de quivi,
do crumble de maçã e ruibarbo e da
casa que cheirava a pickles. Tenho
saudades de saborear o pão de sementes de papoila e os morangos colhidos
frescos pela manhã. Saudades da compota de groselha e dos cereais de nozes. Saudades
de quem eu era, nessa altura, e da vida que saboreava tão doce. Mal sabia eu
que era o começo.
XXVI. Batalhar
Sou fraca e caracterizo-me frequentemente por ser uma
desistente que vira as costas e foge, em vez de batalhar.
Não sei, definitivamente, levantar a voz. Não comi sopa
suficiente quando devia e os meus pulsos são os de uma
menina de doze anos. Automaticamente condenada ao
fracasso, vivo presa aos fantasmas de outro passado.
XXV. Ubiquidade
Só
o Amor e o Ódio estão presentes na constância do meu relógio.
Só o Amor e o Ódio se escondem nos nossos olhos negros.
Só de Amor e de Ódio se veste o vento que assobia.
Não somos animais por nos amarmos e odiarmos.
Só o Amor e o Ódio fazem as nossas noites.
Só o Amor e o Ódio coexistem.
Só Amor e Ódio na noite.
Só Amor e Ódio no dia.
Nas nossas mãos.
Na minha mente.
No teu coração.
Minha pele.
E em mim.
E em ti.
Nós.
Só o Amor e o Ódio se escondem nos nossos olhos negros.
Só de Amor e de Ódio se veste o vento que assobia.
Não somos animais por nos amarmos e odiarmos.
Só o Amor e o Ódio fazem as nossas noites.
Só o Amor e o Ódio coexistem.
Só Amor e Ódio na noite.
Só Amor e Ódio no dia.
Nas nossas mãos.
Na minha mente.
No teu coração.
Minha pele.
E em mim.
E em ti.
Nós.
XXIV. Ziguezague
A minha vida permanece si
nu
o
sa e os meus passos zi
gue
za
gue
an
tes e sinto-me cada vez mais desviada daquilo que é correcto.
XXIII. Ponto
Sentámo-nos na beira da ponte, a bamboar as pernas sobre o rio que nos
fazia nostálgicos e soturnos, a mais de cento e setenta pés dos cadáveres que
sepultámos nas areias movediças do tempo.
De pulmões partilhados e coração único, dividíamos o último cigarro. Era
um daqueles dias cheios de luz, mas levemente brontesco. Um dia para andar de braços ao léu, óculos de sol e
cabelo ao vento. Estávamos muito despenteados, com aquele aspecto grunge, descuidado, contra aquele mundo
cruel em que decidimos nascer.
– Amo-te.
Comprimi os lábios, desnecessitada de sorrir. Era tão natural que me
amasses quanto era natural que os pássaros cantassem no Morro. Não havia nada
tão natural no universo, quanto o canto dos pássaros e o teu amor por mim.
Ou o meu amor por ti.
É nessa parte da vida; na fase em que as camélias florescem, que se
sabe que não há um ponto de retorno. Já se está a adoecer. É a poesia a doença.
This was written about me, for sure
If she did experience sex - or something close to it - in high school, I'm sure it would have been less out of sexual desire or love than literary curiosity.
Sputnik Sweetheart,
by Haruki Murakami
by Haruki Murakami
XXII. Adiantar
Não perco horas a descompassar o relógio da sala. Empato o tempo e chego a tempo ao do teu peito, mais cedo do que o esperado. Talvez ainda o apanhe por volta das cerejeiras em flor, pode ser que vá a tempo. É tudo uma questão de me livrar da pele e ter força para dar corda aos pêndulos.
É tudo uma questão de tempo.
XXI. Soneto
Porque ainda não anoiteceu e porque não bebi o suficiente para te amar
já, reservo-te apenas o que de melhor foi feito na tua terra, de que tanto te envaideces:
guardo-te a melhor safra destas vinhas de mais purificada casta e decoro jarras
com as flores mais graciosas que nasceram no metro quadrado do teu sorriso. Consagro-te
todo o meu tempo, todo o meu corpo, temendo que não o partilhes comigo mesma, estremecendo que
nunca me escrevas um soneto ou que me dediques um dos teus devaneios mais luxuriantes.
Pois é esta a minha sina. A de te amar e de te ajudar a querer quem
não te vê. Quando eu vejo. Quando eu nado em ti, danço e faço-me fácil e sedenta.
Tudo isto é prosaicamente desnecessário e não passa de má poesia.
XX. Voar
Quando não sou livre, sou um livro ainda preso entre vírgulas, nos
teus versos, escritos noutro século, em segredo, alumiado pela velinha no
azeite. E estou sempre agrilhoada a estas memórias.
Quando não quero ser, sou-o no teu nome e no cheiro a água de rosas;
cheiro a infância e a prateleiras escaladas, de saia de bombazine laranja-abóbora,
joelhos rachados, pernas esverdeadas e soquetes esbranquiçados.
No princípio da felicidade, antes de perdermos as asas e ganharmos
pernas, roubávamos bolachas torradas e caramelos que nos colavam nos dentes. Davas-me
as melhores maçãs. Que apanhavas com cuidado, por seres mais alto. Dizias que as
mais doces eram as que tinham bicho. Mas nunca o matávamos, porque seria, um
dia, uma borboleta castanha. Com sorte, seria das brancas. E as borboletas são
boas.
Dava-te as joaninhas que apanhava junto ao tanque de pedra, quase
perdidas na água de sabão rosa.
Joaninha
voa, voa,
Que o teu pai foi a Lisboa,
Com uma faca na mão,
Que t’espeta o
coração.
Brincavas com elas, por entre os dedos finos, morenos, já
compridos, na altura. Eras um príncipe como os das histórias que não sabíamos
ler, e que fingias saber. O mais bonito. E já na altura éramos namorados sem o
sabermos.
Sinto-me nas minhas memórias de ti.
Desculpa…
Nunca sarei daquela dor que doía no peito depois do que foi. Mas eu
sei. Eu sei-o. Que quando estou errada, tens os meus olhos negros certos, tão bem
decorados – cada pestana, na ponta da tua caneta, no caderno de pontas esganadas,
no meio de sussurros esganiçados. Deves guardá-lo na gaveta falsa do guarda-fatos
de madeira escura.
Mas eu já cresci. Agora chego à prateleira sem que me pegues ao colo. Os
caramelos tornaram-se enjoativos. E já não como maçãs.
Tudo o que era em nós perdão e simplicidade, cumplicidade… Voa, em silêncio.
É um tempo para esquecer e orar.
A manhã de amanhã cessará com o vento e voltaremos a ser os dois
meninos.
XIX. Galhofar
Costumava rir dos que choravam, por não lhes entender as dores.
Ou os amores.
Eu.
Eu sabia-os ridículos.
Até ao momento em que amanheceu e me apercebi que também eu era ridícula.
XVIII. Revolto
Nada é tanto, quanto as correntes
que, profundas, percorrem a tua alma. Fazem-se redemoinhos nos teus olhos,
tempestades nas tuas mãos. Espelhas o céu e voam tantos albatrozes-errantes em
ti, que, revolto, agitas o corpo ao som daquela nossa banda que há-de morrer
connosco, porque nunca ninguém amará tanto ao som dela quanto eu. E será um
prazer morrer assim.
XVII. Mentira
Ai quem
me dera uma feliz mentira
que fosse uma verdade para mim!
J. Dantas
Tu julgas que eu não sei que tu me mentes
Quando o teu doce olhar pousa no meu?
Pois julgas que eu não sei o que tu sentes?
Qual a imagem que alberga o peito meu?
Ai, se o sei, meu amor! Em bem distingo
O bom sonho da feroz realidade...
Não palpita d´amor, um coração
Que anda vogando em ondas de saudade!
Embora mintas bem, não te acredito;
Perpassa nos teus olhos desleais
O gelo do teu peito de granito...
Mas finjo-me enganada, meu encanto,
Que um engano feliz vale bem mais
Que um desengano que nos custa tanto!
Florbela Espanca, in A Mensageira das Violetas
This is a cry for a help
Portray sincerity
Act out of loyalty
Defend your free country
Wish away the pain
Hand out lobotomies
To save little families
Surrealistic fantasy
Bland boring... plain!
Hold me down in restitution
Living out your date with fusion
Is the whole fleece shun in master?
Don't feel guilty, masturbating
Somebody said that they're not much like I am
I know I can
Make enough of the words
Act out of loyalty
Defend your free country
Wish away the pain
Hand out lobotomies
To save little families
Surrealistic fantasy
Bland boring... plain!
Hold me down in restitution
Living out your date with fusion
Is the whole fleece shun in master?
Don't feel guilty, masturbating
Somebody said that they're not much like I am
I know I can
Make enough of the words
For you to go along and sing your song
Slippery pessimist
Hypocrite master
Conservative communist
Apocalyptic bastard
Thank you dear God
For putting me on this Earth
I feel very privileged
In debt for my... thirst!
Hold me down in restitution
Living out your date with fusion
Is the whole fleece shun in master?
Don't feel guilty, master writing
Somebody said that they're not much like I am
I know I can
Make enough of the words
For you to go along and sing your song
Slippery pessimist
Hypocrite master
Conservative communist
Apocalyptic bastard
Thank you dear God
For putting me on this Earth
I feel very privileged
In debt for my... thirst!
Hold me down in restitution
Living out your date with fusion
Is the whole fleece shun in master?
Don't feel guilty, master writing
Somebody said that they're not much like I am
I know I can
Make enough of the words
For you to go along and sing your song
Downer, by Nirvana
XVI. Trabalho
O relógio que não tenho no pulso marca, de quarto em quarto, a subida
da montanha mais escarpada de todas. O trabalho sísifico tem-me consumido as forças
corpóreas e causa-me dores temporais e palpitações no peito. Não sei mais o que
fazer disto.
XV. Transparecer
Escrevo no caderno as gotas de chuva que não colho; semeio os bem-quereres
que não chovem.
Já passou a primavera, que te fez abotoar neles. Mas isso foi há
alguns séculos atrás, noutras vidas, noutros corpos; nos mesmos corações.
Agora, nascem os frutos. São venenosos, mortíferos, os pomos que semeei.
Mas nunca, nunca saberás que esses são os frutos com que maior
deleite saboreio, no limiar da morte, no lumiar dos teus olhos e dos nossos
braços enleados. Nunca o sonharás, nunca o meu corpo o transparecerá mais do
que o que a minha alma faz; lavada em fonte, aos teus pés prostrada.
XIV. Admoestar
Afastou os meus lábios sedentes da sua boca com um empurrão brusco sobre o meu pescoço.
Marcou os seus dedos na minha pele clara e apertou-os, aproximando-me e afastando-me. Num gozo constante de toca-e-foge, sem nunca me deixar tocar. Tornou-se exasperante a pausa que levou para me deixar beijá-lo de novo.
Porém, no fundo, percebi que tudo aquilo não passava de um aviso silencioso que me transmitia inconscientemente.
XIII. Retocar
Toca-me e retoca-me, o teu livro preferido, de capa dura e gasta, de letras apagadas com o tempo, que outrora foram douradas. Folheia-me, devagar, sem pressa de chegar ao fim de mim. Olha que os efeitos secundários da poesia são doentios, e a consciência pesa à medida que a mão esquerda fica mais pesada também.
As folhas enegrecidas pelo tempo, a par dos pulmões enegrecidos pela vontade, não queimam. Mesmo que o desejes muito. Sou imortal, já me deverias reconhecer.
Toca-me e retoca-me. Em cada corda do violino, em cada tecla do piano. Preferencialmente nos cinco acidentes, oitavados. Sabias que gosto de música oriental pelos seus cinco tons?
Toca-me aí, ou apenas na mesa de folheado bege, onde ritmas, aleatoriamente, com dois dedos, o início da Birth; caneta na boca, substituindo a falta do cigarro. Finges tão bem quanto sonhas. Muito.
Mas retoca-me, em todas as melodias e ritmos que te vibrarem na pele; retoca-me quando me amas, fechando-me os olhos. Que seja sempre eu, é apenas isso. Sempre eu.
06:06
Os demónios nocturnos batem à minha janela,
como se esta madrugada de vigília tivesse sido escrita por Stoker.
Sibilam, de línguas bifurcadas, palavras latinas: scribe in cute vultus.
Talvez se fechasse os olhos e
os ignorasse apenas...
XII. Transmitir
Eu sei, de
cada vez que o ar muda que não estou sozinha. A mediunidade emprestada revela-se
tão assustadora quanto ineficaz. Excepto quando o ar muda por ti, minha doce
borboleta.
O meu
simples canteiro, quase seco, quase quê, é o teu Éden e, ainda que só na pele e
nos ouvidos, eu vejo-te, como se duma bolha protectora te tratasses.
Lavanda, alfazema. Salsa, sálvia, rosmaninho e tomilho.
És dotada
de sabedoria, ainda que tão pequena, minha doce borboleta. Transmites-me uma
sensação vivamente paralela à nossa teia, tão rica que és, dentro do espelho,
no jardim do fontanário, a dez degraus daqui.
Vou supor
que estejas no País das Maravilhas.
IX. Recortar
Recortei dos livros as palavras mais naturais e desassossegadas que encontrei. Guardei-as numa jarra de vidro para mais tarde recriar, por meio do coração a carvão, a história da Fénix enjaulada, proibida de se fazer renascer.
X. Roda
Na roda gigante da letargia, mantenho-me suspensa, no ar, de cabelos
ao vento e cigarro na mão. O vento bate a porta e sai: leva nos bolsos as
cinzas incandescentes e, na mala, as rememorações dos olhos mais negros que as
estrelas sonharam.
O torpor da noite consome-me os sentidos e os meus pés flutuam em direcção
à lua, onde fica o fim do mundo.
Volto a olhar a terra batida do chão. O anel afasta-se novamente do
solo e sei que estou mais próxima de ti. Presa nesta roda, sem nunca te tocar.
IX. Elástico
Ergue a coroa de hidrângeas, assemelhando-se a uma rainha esquecida, louca, no Templo espiritual que criou, numa floresta inventada, onde só se conhece como deusa e como aia de si mesma.
E, no dom doentio que carrega ao peito, é um bicho resiliente, metamorfoseado.
Ágil, como um lince, forte como um coice, a sua vontade de utopias persiste, atacando, volúvel e incessantemente, como um elástico mirado aos seus olhos.
Niponismos
I have this strange feeling that I'm not myself anymore.
It's hard to put into words, but I guess it's like I was fast asleep,
and
someone came, disassembled me,
and hurriedly put me back together again. That
sort of feeling.
Haruki Murakami, in Sputnik Sweetheart
VII. Safadez
Caía-me, sobre o ombro, a alça larga da camisola verde água. A única
coisa que trazia vestida naquela manhã.
Os raios de sol incidiam sobre o meu cabelo, dando-lhe uma tonalidade
viva.
E foi naquele clima de borboletas e raios de luz que fiquei a olhar as
fotografias instantâneas, jazidas sobre a cama desfeita, ainda com marcas de
sangue.
A minha fonte.
O pormenor dos lábios cheios, secos, engelhados; semiabertos. Deverias
estar a falar quando tirei a foto. O fumo que a câmara captara era visível, e
os teus dentes, ligeiramente mais alto o direito do que o esquerdo, já marcados
pelo tabaco, convidavam a tanta coisa. Talvez estivesses a divagar sobre a tua
vida ser uma merda e como estavas insatisfeito. Sim, era isso. Estavas sempre a
resmungar sobre isso. Nunca me deixavas tomar conta desses pensamentos por
inteiro.
Quando sorrias, e era raro fazê-lo, eu apaixonava-me um pouco mais. Como
poderia eu passar a minha vida toda sozinha, sabendo que aqueles lábios me
pertenciam? Sabendo que sorriam quando me beijavam?
Estiquei o braço frio para recolher os segundos espalhados e
perscrutei o teu olhar.
Os teus olhos.
Os olhos de um homem louco, mas grandes e arredondados; meio
asiáticos, ainda assim. Os olhos sonhadores, sem fundo, negros como a noite. Tao
lindos, meu amor.
Não gosto de falar dos teus olhos. Gostava de os ver. Eram para serem
olhados por todos. Vistos por alguns. Apenas enxergados por mim.
Nos teus olhos nascia o sol, sabias? Eras o nascente, para onde
apontaria sempre.
O teu pescoço e as marcas que deixei nele.
Aquela foi uma noite ávida, urgente. As nossas noites eram sempre
assim. Violentas e tempestuosas. Uma dança bélica entre a carne a alma; as mãos
no pescoço, nos cabelos, nos seios, nos quadris. Os teus dedos marcados no meu
peito, as tuas unhas nas minhas pernas; as minhas nas tuas costas. Eram
adivinháveis as nossas noites… as nossas tardes, as nossas manhãs, mas nunca
iguais. E as marcas que ainda restavam, então esverdeadas, na minha pele, como
líquenes leves, submergidos, eram apenas as memórias daqueles beijos de ameixas
de S. João, no teu pescoço, em direcção ao peito. Daquelas ameixas que
saboreávamos encostados ao muro de cimento, sobre a sombra das roseiras
amarelas, que nos atraíam, tão bem quanto atraíam as abelhas. Daquelas ameixas
tão doces e sumarentas, que escorria o néctar sobre os pulsos, em direcção aos
cotovelos. E queixavas-te que fazia comichão. E deixavas-me sorver esse sumo. Brincávamos
tanto… e que fosse apenas sumo de ameixa a escorrer-nos pelos pulsos.
Sorri e atirei o retrato ao chão.
As tuas mãos e o sangue que desenhava o contorno das tuas unhas.
Era meu, esse sangue. Era teu e era nosso. A cicatriz ainda era uma
crosta fina. Na polpa da base do polegar da mão esquerda, estava a tua inicial,
desenhada com a navalha. A minha deveria estar cravada na tua mão também. As tuas
mãos eram tão morenas, que a cicatriz iria ficar tão rosada e visível. Que maldição
que carregarias em ti para sempre. Que mantra que eu rezaria todas as manhãs.
O teu ventre.
Onde eu ouvia a vida em ti, sempre que repousava a cabeça. Sentia o
teu batimento cardíaco, viril, acelerado. Brincava com os dedos sobre a linha
de penugem negra em direcção àquilo que unia as carnes.
E tantas outras fotos da tua pele, do sinal nas costas, das marcas que
decidiste tingir em ti; que decidiram tingir em ti. Do cabelo ao vento, à
chuva, tão estival por vezes. Do nariz grande e pronunciado, da barba no
pescoço, das orelhas pequenas. Dos ombros largos, ósseos, dos braços fortes e,
no fundo, frágeis. Das cicatrizes nos joelhos, feitas noutros tempos, quando
eras rei do recreio, ou quando te ajoelhaste sobre os estilhaços de vidro para
socorrer àquela ninhada de gatinhos na fábrica abandonada.
São tantas as fotos que tenho tuas. E tu estás… tu estás morto.
Eram noites voluptuosas, as nossas. Mas havia tanto amor. Haverá sempre.
VI. Solidificar
As mãos grandes são para quem dá
muito, disse-lhe o velhote no banco de jardim, de barrete cinzento e olhos
turvos, cuja cor fugira com o amor da mocidade.
As pessoas com as mãos grandes, como as dela, são generosas e têm um
coração enorme. Um coração que dá sempre a outra face, que oferece a garrafa
cheia e o casaco. Porque na inocência dela, acha que o casaco, apesar de
pequeno, pode cobrir o mundo de todas as tempestades.
Mas as mãos dela são metaforicamente calejadas e fortes. Tem os dedos
rijos, tenazes, mas frios. Das duas, uma: ou tem má circulação sanguínea, ou
deixou de bombear a vida com a força do antigamente. É um caulezinho sem seiva,
ela.
Não sabe como gerir o afecto, porque esse lhe foi tirado noutras
idades. Não se permite à troca de sorrisos banais, não se permite a abraços
forçados, não vive para ser como os outros. Prefere deixar cartas em vez de ter
de as ler em voz alta, até porque não saber proferir a Palavra-A, como lhe chama, assustada, de olhos arregalados. Duas luas
enormes que tem ali, no olhar.
Ela não cria laços porque acha que tem os suficientes. Não solidifica
relações porque nenhuma é feita de teia de aranha. E acredita que essa é a matéria
mais forte, capaz de fazer tapeçarias persas, candelabros de cristal, janelas
viradas ao mar.
As mãos grandes são para quem
usa o corpo e deixa o coração a repousar, respondeu-lhe.
Músicas de A a Z
Vi no blog Wanderlust um desafio a que decidi aderir também, visto ser uma grande apreciadora de música.
Consiste em escolher uma música para cada letra do alfabeto.
Como tenho um gosto musical bastante eclético, foi difícil de escolher entre várias músicas, mas acho que consegui...
Então aqui está, com mais arte, ou com menos. Na confusão e no silêncio, estas são as ondas que me banham a pele:
Então aqui está, com mais arte, ou com menos. Na confusão e no silêncio, estas são as ondas que me banham a pele:
A – Alice, Tom Waits
B – Because The Night, Patti Smith
C – Chelsea Hotel #2, Leonard Cohen
D – Disarm, The Smashing Pumpkins
E – Enter Sandman, Metallica
Mogwai, no NOS Primavera Sound 2014 |
G – Gib Mir Deine Augen, Rammstein
H – Heart-Shaped Box, Nirvana
I – Inflatable, Bush
J – Just Breath, Pearl Jam
K – Kashmir, Led Zeppelin
L – Lonely Day, System Of A Down
M – Magdalena, Pixies
N – Ninguém Escreve À Alice, Rui Veloso
O – Opium, Moonspell
P – Perfect Day, Lou Reed
Q – Quarto 210, Linda Martini
R – Remurdered,
Mogwai
S – Shine On You Crazy Diamond, Pink Floyd
T – Tourette’s, Nirvana
U – Ultraviolence, Lana del Rey
V – Vanderlyle Crybaby Geeks, The National
W – We Might Be Dead My Tomorrow, Soko
X – X, System Of A Down
Y – Young Lust, Pink Floyd
Z – Zombie, The Cranberries
My love's shades
But I can't help him, can't make him better.
And I can't do nothing about his strange weather.
Shades Of Cool, by Lana Del Rey
V. Afocinhar
Existem
luas em mim. Várias. Eu vivo num luar circulante que engloba toda a
electricidade do meu corpo. Que percorre o palato seco, os lábios, fazendo-os
tremer; eleva-me o peito em palpitações; faz-me das mãos balões de hidrogénio.
Fumo
um cigarro.
Fumo
outro cigarro.
Sem
sinais de Índigo, só sinais de fumo, teço teias comigo mesma. Vivo a histeroneurastenia
emprestada ao seu limite máximo.
Ora
acre, ora doce, sou eu, a dona dos meus dias. Nas mentiras que conto ao vento,
à figueira de Agosto, nas quedas que dou.
Mas,
tal como o sonho, eu sou um bichinho
álacre e sedento, em busca da minha Pedra Filosofal, num constante
afocinhar por razões para manter a razão ocupada durante a Roleta
Russa.
A
vodka está a escassear e o meu coração tem azar ao jogo.
Parabéns a mim...
... que consegui viver neste blog durante um ano.
Eu, tão dada à liberdade, tão gasta das amarras do quotidiano.
Eu, tão dada à liberdade, tão gasta das amarras do quotidiano.
Parabéns ao meu blog, que foi, provavelmente, a única coisa que tive como certa
durante este tempo todo: uma casa ao chegar a casa.
III. Yoga
Beber das cearas as melhores manhãs de Julho tornou-se um hábito para o rapaz de calças gastas e cabelo farto.
Controlado, ungido, unido à sua essência, longe de casa, encontrou um lar.
II. Cheirar
Não era a primeira vez que, durante a noite, acordava com a sensação
das mãos pequenas de sempre a afagar-lhe a barba do pescoço e o cabelo farto
que lhe sobrava na testa. Essa era umas das vezes em que o lado esquerdo da
cama estava gelado, mas continuava a cheirar a pêssego.
Não era a primeira vez que o som das teclas do piano lhe cheirava a
amoras apaixonadas, que os raios brancos de sol nascente que atravessavam as
cortinas de renda lhe cheiravam ao chá de limonete que, carinhosamente, ela lhe
preparava todas as manhãs.
Não era a primeira vez que olhava o céu e desejava que, onde quer que
ela estivesse, rogasse às estrelas por um lugar para ele, mesmo ao lado dela. Lá,
onde cheira a paz.
I. Viajar
Trazia no peito o baú. Tão cheio
de coisas de dândi, livros que, por terem capas de couro, gravados a dourado, achava serem bonitos na
biblioteca que não possuía. Trazia um par de sapatos castanhos, envernizados, de sola de madeira, que só
usava em ocasiões especiais. Talvez quando for viajar... Porém, era fria e húmida a calçada que, descalço,
pisava todos os dias.
A vida era-lhe, a carvão e vodka, uma viagem rude e
grave.
Isto não é sobre ti.
Na sala dos espelhos, a orquestra das evocações respira
o seu último
segundo, antes da entrada em palco.
Rasgam sons vagos e afinam dissonantemente.
Os violinos estão cada um a seu tom, com as cordas trocadas;
os arcos, de
cerdas sujas, arranham o cavalete e os dentes do maestro rangem...
Os sons tão inconscientes de um coração espelhado são,
simples e conjugadamente,
os sons do outro peito.