Quando não sou livre, sou um livro ainda preso entre vírgulas, nos
teus versos, escritos noutro século, em segredo, alumiado pela velinha no
azeite. E estou sempre agrilhoada a estas memórias.
Quando não quero ser, sou-o no teu nome e no cheiro a água de rosas;
cheiro a infância e a prateleiras escaladas, de saia de bombazine laranja-abóbora,
joelhos rachados, pernas esverdeadas e soquetes esbranquiçados.
No princípio da felicidade, antes de perdermos as asas e ganharmos
pernas, roubávamos bolachas torradas e caramelos que nos colavam nos dentes. Davas-me
as melhores maçãs. Que apanhavas com cuidado, por seres mais alto. Dizias que as
mais doces eram as que tinham bicho. Mas nunca o matávamos, porque seria, um
dia, uma borboleta castanha. Com sorte, seria das brancas. E as borboletas são
boas.
Dava-te as joaninhas que apanhava junto ao tanque de pedra, quase
perdidas na água de sabão rosa.
Joaninha
voa, voa,
Que o teu pai foi a Lisboa,
Com uma faca na mão,
Que t’espeta o
coração.
Brincavas com elas, por entre os dedos finos, morenos, já
compridos, na altura. Eras um príncipe como os das histórias que não sabíamos
ler, e que fingias saber. O mais bonito. E já na altura éramos namorados sem o
sabermos.
Sinto-me nas minhas memórias de ti.
Desculpa…
Nunca sarei daquela dor que doía no peito depois do que foi. Mas eu
sei. Eu sei-o. Que quando estou errada, tens os meus olhos negros certos, tão bem
decorados – cada pestana, na ponta da tua caneta, no caderno de pontas esganadas,
no meio de sussurros esganiçados. Deves guardá-lo na gaveta falsa do guarda-fatos
de madeira escura.
Mas eu já cresci. Agora chego à prateleira sem que me pegues ao colo. Os
caramelos tornaram-se enjoativos. E já não como maçãs.
Tudo o que era em nós perdão e simplicidade, cumplicidade… Voa, em silêncio.
É um tempo para esquecer e orar.
A manhã de amanhã cessará com o vento e voltaremos a ser os dois
meninos.
4 comentários:
fico muitas vezes com a sensação nauseante de que o que acabei de ler foi das coisas mais bonitas que li. esta é mais uma dessas vezes.
habituas-me sempre a grandes textos, mesmo os mais curtos são grandes. mas este...tem uma magia qualquer por detrás dele, que me fez envolver na história e fez-me ser a maçã da história, a menina, o bicho, a borboleta...tudo isto para te dizer que foi bom voar contigo :)
os meus pêsames. sentidos, muito sentidos. e sabes que compreendo a dor. dor essa que não vai passar, mas que se vai esbater com o tempo.
a insónia e o tempo interdito entre sopros de vento da janela... as mesmas razões que me levam às palavras.
não leio só a frente das tuas palavras; imagino-te nelas. imagino-me nelas. e é por isso que te leio... porque procuro fugir do mundo em que vivo ao ler-te.
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Quando lia contos de fadas, eu imaginava que aquelas coisas nunca aconteciam, e agora cá estou no meio de uma! Deveria haver um livro escrito sobre mim, ah isso deveria! E quando for grande, vou escrever um...
L.C.