Caía-me, sobre o ombro, a alça larga da camisola verde água. A única
coisa que trazia vestida naquela manhã.
Os raios de sol incidiam sobre o meu cabelo, dando-lhe uma tonalidade
viva.
E foi naquele clima de borboletas e raios de luz que fiquei a olhar as
fotografias instantâneas, jazidas sobre a cama desfeita, ainda com marcas de
sangue.
A minha fonte.
O pormenor dos lábios cheios, secos, engelhados; semiabertos. Deverias
estar a falar quando tirei a foto. O fumo que a câmara captara era visível, e
os teus dentes, ligeiramente mais alto o direito do que o esquerdo, já marcados
pelo tabaco, convidavam a tanta coisa. Talvez estivesses a divagar sobre a tua
vida ser uma merda e como estavas insatisfeito. Sim, era isso. Estavas sempre a
resmungar sobre isso. Nunca me deixavas tomar conta desses pensamentos por
inteiro.
Quando sorrias, e era raro fazê-lo, eu apaixonava-me um pouco mais. Como
poderia eu passar a minha vida toda sozinha, sabendo que aqueles lábios me
pertenciam? Sabendo que sorriam quando me beijavam?
Estiquei o braço frio para recolher os segundos espalhados e
perscrutei o teu olhar.
Os teus olhos.
Os olhos de um homem louco, mas grandes e arredondados; meio
asiáticos, ainda assim. Os olhos sonhadores, sem fundo, negros como a noite. Tao
lindos, meu amor.
Não gosto de falar dos teus olhos. Gostava de os ver. Eram para serem
olhados por todos. Vistos por alguns. Apenas enxergados por mim.
Nos teus olhos nascia o sol, sabias? Eras o nascente, para onde
apontaria sempre.
O teu pescoço e as marcas que deixei nele.
Aquela foi uma noite ávida, urgente. As nossas noites eram sempre
assim. Violentas e tempestuosas. Uma dança bélica entre a carne a alma; as mãos
no pescoço, nos cabelos, nos seios, nos quadris. Os teus dedos marcados no meu
peito, as tuas unhas nas minhas pernas; as minhas nas tuas costas. Eram
adivinháveis as nossas noites… as nossas tardes, as nossas manhãs, mas nunca
iguais. E as marcas que ainda restavam, então esverdeadas, na minha pele, como
líquenes leves, submergidos, eram apenas as memórias daqueles beijos de ameixas
de S. João, no teu pescoço, em direcção ao peito. Daquelas ameixas que
saboreávamos encostados ao muro de cimento, sobre a sombra das roseiras
amarelas, que nos atraíam, tão bem quanto atraíam as abelhas. Daquelas ameixas
tão doces e sumarentas, que escorria o néctar sobre os pulsos, em direcção aos
cotovelos. E queixavas-te que fazia comichão. E deixavas-me sorver esse sumo. Brincávamos
tanto… e que fosse apenas sumo de ameixa a escorrer-nos pelos pulsos.
Sorri e atirei o retrato ao chão.
As tuas mãos e o sangue que desenhava o contorno das tuas unhas.
Era meu, esse sangue. Era teu e era nosso. A cicatriz ainda era uma
crosta fina. Na polpa da base do polegar da mão esquerda, estava a tua inicial,
desenhada com a navalha. A minha deveria estar cravada na tua mão também. As tuas
mãos eram tão morenas, que a cicatriz iria ficar tão rosada e visível. Que maldição
que carregarias em ti para sempre. Que mantra que eu rezaria todas as manhãs.
O teu ventre.
Onde eu ouvia a vida em ti, sempre que repousava a cabeça. Sentia o
teu batimento cardíaco, viril, acelerado. Brincava com os dedos sobre a linha
de penugem negra em direcção àquilo que unia as carnes.
E tantas outras fotos da tua pele, do sinal nas costas, das marcas que
decidiste tingir em ti; que decidiram tingir em ti. Do cabelo ao vento, à
chuva, tão estival por vezes. Do nariz grande e pronunciado, da barba no
pescoço, das orelhas pequenas. Dos ombros largos, ósseos, dos braços fortes e,
no fundo, frágeis. Das cicatrizes nos joelhos, feitas noutros tempos, quando
eras rei do recreio, ou quando te ajoelhaste sobre os estilhaços de vidro para
socorrer àquela ninhada de gatinhos na fábrica abandonada.
São tantas as fotos que tenho tuas. E tu estás… tu estás morto.
Eram noites voluptuosas, as nossas. Mas havia tanto amor. Haverá sempre.
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Quando lia contos de fadas, eu imaginava que aquelas coisas nunca aconteciam, e agora cá estou no meio de uma! Deveria haver um livro escrito sobre mim, ah isso deveria! E quando for grande, vou escrever um...
L.C.