VI. Solidificar

As mãos grandes são para quem dá muito, disse-lhe o velhote no banco de jardim, de barrete cinzento e olhos turvos, cuja cor fugira com o amor da mocidade.
As pessoas com as mãos grandes, como as dela, são generosas e têm um coração enorme. Um coração que dá sempre a outra face, que oferece a garrafa cheia e o casaco. Porque na inocência dela, acha que o casaco, apesar de pequeno, pode cobrir o mundo de todas as tempestades.
Mas as mãos dela são metaforicamente calejadas e fortes. Tem os dedos rijos, tenazes, mas frios. Das duas, uma: ou tem má circulação sanguínea, ou deixou de bombear a vida com a força do antigamente. É um caulezinho sem seiva, ela.
Não sabe como gerir o afecto, porque esse lhe foi tirado noutras idades. Não se permite à troca de sorrisos banais, não se permite a abraços forçados, não vive para ser como os outros. Prefere deixar cartas em vez de ter de as ler em voz alta, até porque não saber proferir a Palavra-A, como lhe chama, assustada, de olhos arregalados. Duas luas enormes que tem ali, no olhar.
Ela não cria laços porque acha que tem os suficientes. Não solidifica relações porque nenhuma é feita de teia de aranha. E acredita que essa é a matéria mais forte, capaz de fazer tapeçarias persas, candelabros de cristal, janelas viradas ao mar.
As mãos grandes são para quem usa o corpo e deixa o coração a repousar, respondeu-lhe.

2 comentários:

Euterpe disse...

Adoro querida Alice.

Jéssica Cardoso disse...

a sensação com que fico quando acabo de ler-te é que conheço muitas pessoas erradas, e que há pessoas como tu, que tornam o meu mundo mais certo. poder ler alguém é poder estar perto.
como diria Pessoa, "a literatura é a melhor forma de ignorar a vida", e de vive-la da maneira mais escondida e singular de todas, completo eu.
ah, já conheci um ou dois velhos como o do barrete cinzento. e uma alma que também não vive para ser como os outros.

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Quando lia contos de fadas, eu imaginava que aquelas coisas nunca aconteciam, e agora cá estou no meio de uma! Deveria haver um livro escrito sobre mim, ah isso deveria! E quando for grande, vou escrever um...
L.C.