ave amore: III

Pausei o relógio. Pousei o relógio e sentei-me; senti-me, no sangue que começara a fluir novamente sob a pele gelada das pernas. Estavam já roxas, trémulas. Sob os olhos, dois abismos rugiam, da mesma cor que um céu tempestuoso. Hesitei e toquei-me naquele vácuo que se fazia de meu cão-de-guarda: a minha maior companhia.
A dor confortava-me e eu só sabia amar, doendo. Sabia que não seria a mesma. Sabia que todos os caminhos eram finas teias de aranha, pequenas gotas de orvalho… eu caminhava descalça e, a todo o custo, esforçava-me para manter o balanço, qual equilibrista sob um chão de espinhos.
Sabia que assim que chegasse ao centro, ao roseiral – oh!, e Deus sabe o quanto eu o queria –, uma cama de fina erva primaveril cobriria toda a dor e daria descanso aos meus pobres pés peregrinos.  
Sorri, ainda trémula, mas segui em frente e no final daquela fina linha de seda, tudo o que eu deixara para trás, evaporara-se. Uma densa camada de fumo ocupava as minhas memórias e o meu peito chamava-me para a natureza.
Colhi, por fim, a melhor das flores. Sorri-lhe e beijei-a, deixei-me envolver pelo toque suave das suas pétalas e bebi daquele perfume. Amei-a. Naquele momento, soube que a amaria até morrer. Soube que todos os meus espinhos foram cortados. Não existia mais barreira nenhuma entre mim e mim mesma. E eu era feliz e eu era energia. E tudo ali era paz e em mim não viveria mais do que a beleza duma rosa.

Muito estranhamente, isto é um ave amore.

1 comentário:

R disse...

Este Jardim é como o Passeio das Virtudes, ascendendo-nos paulatinamente em direcção ao Miradouro do curso de uma Alma.

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Quando lia contos de fadas, eu imaginava que aquelas coisas nunca aconteciam, e agora cá estou no meio de uma! Deveria haver um livro escrito sobre mim, ah isso deveria! E quando for grande, vou escrever um...
L.C.