Na pele que chove,
A escura noite só,
Espelha-me só.

Alice

«Sou uma emoção estrangeira»

Há uma música do Povo
Nem sei dizer se é um Fado
Que ouvindo-a há um ritmo novo
No ser que tenho guardado…
Ouvindo-a sou quem seria
Se desejar fosse ser…
É uma simples melodia
Das que se aprendem a viver…
Mas é tão consoladora
A vaga e triste canção…
Que a minha alma já não chora
Nem eu tenho coração…
Sou uma emoção estrangeira,
Um erro de sonho ido…
Canto de qualquer maneira
E acabo com um sentido!

Fernando Pessoa

ave amore: I

É um mistério, este, meio triste, meio alegre, o de gostar-te. O de olhar-te, sol d'alva, nas manhãs em que o orvalho me beija os ombros leves e me cai sobre os olhos – plumas – nas molezas de quem amou a lua por dentro. De lábios dormentes e pálpebras desejosas de florirem.
É um segredo, este, meio meu, todo nosso, o de sorrir-te, inocentemente, na nudez de quem solta os dias, e agarra os quereres, lascivamente, de unhas cravadas na pele...
A pele – esse véu fervente de tudo quanto um Homem guarda dentro de si. De tudo e… e de nós. De espaços intemporais e lábios vorticosos, entre suspiros sedentes de mares mais revoltos e de céus mais altos.
É assim que vives dentro de mim; é desta forma que te sonho; te vivo como se vive, sem se dar por isso.

Tua,

Desenhando um eixo de luz, flutuavam sobre bolhas de pensamentos. Fundidos entre sonhos, e por entre ruas que faziam íntimas  –  como se faz a uma casa  –, vivam da única forma que sabiam: contavam mentiras e brindavam aos sorrisos que faziam seus, tão íntimos  – como se faz a um quarto.
Surripiavam flores dos canteiros anónimos e guardavam-nas num espectro eterno; guardavam-nas em caixinhas coloridas, cheias de memórias  –  grãos de água e gotas de areia
Tocavam no ar e nas nuvens... e na relva e na casca áspera das árvores centenárias e selavam o mundo num olhar rápido e palpável, urgente de toques e anseios; o seu mundo, que faziam muito seu  – como se faz a uma cama.