As melodias ofegantes que íamos tomando ao chá escorregavam-nos pelos
pensamentos, pelos lábios e, de gosto acerejado: elevavam-nos às figuras de
deuses omniscientes. Davam a ideia de sermos esféricos, simples, e de ainda
vivermos dentro de um sentimento quente e intrauterino. Um sentimento de leveza
e paz: tão doce quanto o chá que nos aquecia as almas.
Uma sensação de catarse percorria assim as pontas dos nossos dedos, e
as palavras que escapavam por eles – sob a forma de gestos florais, muito
contidos e infantis.
A chuva (se Deus a dava) chicoteava os vidros das janelas, de onde
escorriam os vapores do chá, e nós lá estávamos: naquela atmosfera tão natural e
açucarada.
Conversávamos, sonolentamente, sobre o inverno e sobre meias: diga-se
que, no que toca a meias, não foi uma conversa tão solene assim. E íamos bebericando da música e das chávenas de chá, à medida que o
tempo passava. E, rapidamente, nos apercebemos que já não falávamos de meias,
mas de passos.
E era a consciência que nos assolava; a consciência que nos pesava na
cabeça e nos peitos cheios de ar e de esperança; consciência da inconsciência da
passagem do tempo, sobretudo. E o quanto tudo isso era absurdo.
Então, resfolgaste, encolheste os ombros e disseste, sorrindo, com
muita simplicidade: nunca seremos suficientes para o que nos rodeia. Pousaste a chávena, levantaste-te do sofá de couro verde e
dirigiste-te até à janela.
Estavas certo disso: como era habitual, conseguias condensar os
maiores turbilhões numa frase e num sorriso, fazendo-os eclipsarem-se, numa
ilusão.
2 comentários:
Maravilhoso Alice. Crias mundos com as tuas palavras, senti o açúcar do chá ao ler-te. O inverno traz coisas boas.
Tão bom quando assim acontece!
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Quando lia contos de fadas, eu imaginava que aquelas coisas nunca aconteciam, e agora cá estou no meio de uma! Deveria haver um livro escrito sobre mim, ah isso deveria! E quando for grande, vou escrever um...
L.C.